Ninfomaníaca - Volumes 1 e 2

O cineasta dinamarquês Lars Von Trier gosta de provocar, aprecia um escândalo e está sempre impondo desafios ao espectador. Nesse longa metragem, protagonizado por uma personagem compulsiva, refém da solidão e da angústia, o tom de desconforto não é diferente comparado às outras obras de sua controvertida filmografia. Dividido em duas partes, não transmite a crueza de Anticristo (2009), o desespero de Melancolia (2011) ou o cinismo de Dogville (2003), mas a visão pessimista da humanidade, seu espírito predador e sua decadência moral estão ali. Escorado no marketing de que conteria um volume imenso de cenas de sexo explícito, o filme como foi editado não chega a abusar desse recurso, embora mostre algumas imagens de penetração, sexo oral e ângulos ginecológicos.

Polêmica à parte, o novo trabalho do diretor é outra vez instigante. Na hipnótica abertura, uma sinfonia de chuva reverberando nos telhados, entrecortada pelo rock industrial da banda Metallers, um homem maduro (Stellan Skarsgard) socorre, num beco escuro, uma mulher de meia idade desacordada e ferida (Charlotte Gainsbourg). Como ela recusa o auxílio da polícia ou o chamado da assistência médica, ele a leva para o seu apartamento, onde oferece um chá e iniciam uma conversa com ares de uma sessão psicanalítica.

A partir desse inusitado encontro, Joe vai desfiar para Seligman a história picante de sua vida sexual, desdobrada em oito capítulos, divertidos, exasperantes e pitorescos. Logo de cara, ela informa que se julga uma pessoa ruim, adjetivo prontamente questionado pelo seu interlocutor. Tudo por conta de seu comportamento devasso. Seu relato em flashbacks começa no momento em que sentiu prazer erótico pela primeira vez, aos sete anos de idade, ao lado de sua melhor amiga, no chão do banheiro de sua casa. Depois, o formigamento que experimentou entre as pernas durante uma aula de educação física na escola primária. Em seguida, relembra a perda da virgindade aos 15 anos numa oficina suja, para um adolescente que parecia mais atento à sua moto que ao ato em si. Este personagem (Shia La Beouf), aliás, será o único a surgir com regularidade nas suas memórias. A presença do pai também é forte – é o único com quem ela mantém uma relação preenchida de afeto.

Para a então adolescente Joe (Stacy Martin, nessa primeira parte), o sexo não passa de um jogo, uma forma de rebeldia que a põe a seduzir tantos homens quanto possível – eles são como peças num tabuleiro. Efetivamente, ela acredita em sexo sem amor, paixão e desejo. Basta observar a disputa que trava com uma amiga em uma viagem de trem: quem conseguir fazer sexo com mais homens ganhará uma caixa de bombons. Vestidas como periguetes, ambas são bastante diretas na abordagem. O paradoxo de suas incursões sexuais é que não há evidência alguma de que a quantidade de transas a faça feliz. Não existe senso de diversão, talvez alguma satisfação derivada do poder de manipulação. Joe, inclusive, boicota qualquer chance de se apaixonar e vive a reboque do acaso. Há uma cena reveladora dessa aparente frieza. Um confronto cáustico entre ela e a esposa descompensada (Uma Thurman, em rápida performance arrebatadora) de um de seus amantes. Traída, a mulher insiste em mostrar a seus filhos pequenos a cama onde o pai comete a infidelidade. A sequência é divertidamente potencializada com a chegada de outros homens ao apartamento.

Seligman escuta atentamente as histórias. Intelectual solitário, ele interrompe eventualmente os relatos desatando comentários inusitados sobre arte, literatura, música clássica e a natureza do desejo sexual. Até mesmo o esporte da pesca serve de objeto de comparação. No fundo, ele tenta encontrar uma lógica no que ouve. Por exemplo: quando ela é penetrada oito vezes pelo colega da moto, ele identifica ali um padrão de números de Fibonacci (matemático italiano da Idade Média). Em outro momento, a vagina é comparada a uma isca e os homens que a estariam procurando se comparariam a um pescador em busca do peixe. Em sua avaliação, o comportamento dela não é tão abominável assim. Muitos enxergam nesse personagem erudito uma crítica do diretor à interpretação crítica de tudo. É possível.

Se o primeiro capítulo se concentra na promiscuidade de uma jovem obcecada por sexo, nesta sequência, a madura Joe (Charlotte Gainsbourg) envereda por um  caminho sem volta. Ela perdeu a capacidade de alcançar o orgasmo e acredita agora que o prazer pode ser obtido por meio da dor. Ao conhecer o fetichista K (Jamie Bell), perito na arte da dominação das mulheres, ela vivencia outros prazeres amarrada a cordas e recebendo chicotadas. Curiosamente, não existe sexo entre eles, apenas um exercício declarado de poder e submissão. O diretor adiciona uma subtrama ao enredo. Nela, o agiota L (Willem Dafoe) contrata a ninfomaníaca para pressionar e coagir os caloteiros. Também uma série de revelações, muitas sombrias, eclode. Há uma cena em que ela está num quarto com dois homens negros que, de forma competitiva, discutem detalhes sobre a relação sexual. 

Em ambos os volumes, o sexo é visto mais como quadro contemplativo do que motor de excitação. Trata-se de uma obra fincada ainda no contraste entre um homem dotado de teorias e uma mulher que extrai conhecimento pelo uso do corpo. Diz muito sobre as pulsões anárquicas e radicais típicas nos trabalhos do cineasta, que se equilibra entre a provocação, a ironia, a sordidez e a filosofia. Num filme protagonizado por uma ninfomaníaca, a espinha dorsal não é o sexo explícito, mas como a sexualidade pode ser compreendida e dissecada.    

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

Ninfomaníaca – Volumes 1 e 2

Título Original: Nymphomaniac (Dinamarca / Alemanha / França / Bélgica, 2013)

Gênero: Drama, 118 min (parte 1) e 124 min (parte 2)

Direção: Lars Von Trier

Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Shia LaBeouf, Stacy Martin e outros.

Estreou: 10/01/2014

 

Veja trailer do filme:

 

 

 

 

 

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