40ª Mostra: O Melhor do Cinema Mundial

Casal de irmãos mantém relação incestuosa.

Mulher de meia idade descobre um rabo nascendo em seu corpo.

Duas sereias se envolvem com humanos em casa noturna.

Zumbis coreanos promovem terror em trem de passageiros.

Vítima sente atração por quem a estupra.

Estranha criatura enlouquece quem entra em contato com ela.

Estes são temas de alguns filmes que movimentam a maratona cinematográfica na capital paulista, entre 19 de outubro a 2 de novembro.

 A prestigiada Mostra Internacional de Cinema, em sua 40ª edição, traz 322 títulos de diversos países do mundo, um xadrez de gêneros, linguagens, estéticas e temas.

A programação oferece um baú de longas marcantes e memoráveis.

É o caso, por exemplo, de Elle (foto acima), o provocativo trabalho do diretor holandês Paul Verhoeven.

Magnata de uma empresa de videogames, a divorciada de meia-idade Michelle (Isabelle Huppert) é violentada em sua casa e tenta superar o fato.

Ela tem de enfrentar um trabalho desgastante, enreda-se nos problemas familiares e mantém caso secreto com homem casado.

Para complicar, a executiva é filha de um notório assassino em série dos anos 1970 e muita gente acredita que, de alguma forma, a então menina estava envolvida em seus crimes.

O estupro é esquecido durante longos períodos da narrativa, mas a memória do evento permanece sorrateiramente em Michelle.

Curiosamente, a identidade do estuprador é revelada sem muito alarde, porque tanto o agressor quanto a agredida iniciam um tipo estranho de relação sadomasoquista.

Trata-se de um thriller desconfortável, um instigante estudo de caráter e da natureza do desejo.

Em O Apartamento (foto ao lado), o interessante drama do diretor iraniano Asghar Farhadi ambientado no Teerã, o casal de classe média Emad e Rana é obrigado a deixar o prédio onde moravam, ameaçado de ruir, e se instalam provisoriamente em um apartamento indicado por um amigo, ex-residência de uma prostituta.

Afora suas atividades profissionais, eles contracenam em uma montagem teatral de A Morte de Um Caixeiro Viajante, clássico de Arthur Miller.

A trama se incendeia no instante em que a esposa é atacada dentro do lar por um estranho, sequência que não é mostrada.

A partir daí, ambos reagem de maneiras diferentes, o que instaura pressão sobre o seu relacionamento.

Há um encanto formal na maneira como Farhardi aproxima as situações sombrias e complexas da vida real do casal com as cenas da peça de Arthur Miller.

No palco, um angustiado Willy Loman (Emad) se questiona porque não consegue propiciar à sua família uma condição estável de vida.  

Na tela, Emad quer entender porque não pode proteger sua esposa do assalto.

A tensão vai gradativamente aumentando, turbinando a atmosfera de paranóia do homem.

No desfecho, após o surgimento de um terceiro personagem, Emad se vê mergulhado entre o instinto de perdão e o anseio de vingança, dúvida que levará o casamento ainda mais para a borda da destruição.

Morte em Sarajevo (foto ao lado), do cineasta bósnio Danis Tanovic, é envolvente.

Um luxuoso hotel na capital bósnia se prepara para receber importantes políticos para relembrar o centenário do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand por um nacionalista sérvio, estopim da Primeira Guerra Mundial.

O longa toca na ferida da discórdia paralisante da região, que já foi território de conflitos e derramamento de sangue entre vizinhos próximos.

Várias intrigas transcorrem simultaneamente.

Há uma greve em gestação entre os funcionários, explosivo o suficiente para colocar em risco o evento programado para acontecer.

O gerente do hotel precisa arrumar a casa, nem que para isso chantageie a recepcionista, seu braço direito na administração, e apele para gângsteres para coibir o movimento grevista.

Um palestrante importante da França está no quarto se preparando para o discurso, sendo secretamente monitorado em vídeo por um segurança.

No topo do prédio, uma jornalista de televisão entrevista especialistas e historiadores sobre os episódios de um século atrás.  

O entrevistado mais eloqüente é um nacionalista sérvio, para quem o assassino era um herói nacional e não um terrorista.

Tanovic circula com desembaraço pelos múltiplos enredos.

A câmera segue os personagens e concede um sentido metafórico aos acontecimentos.

Outros três filmes são obrigatórios.

Um deles é o venezuelano El Amparo, do diretor Rober Calzadilla, sobre o drama de pescadores confundidos com guerrilheiros.

Produção tensa, que faz um registro acurado do embate entre uma cidade e as autoridades.

O que se discute, nas entrelinhas, é quem controla a verdade.

A cena capital do massacre, por exemplo, não é exibida.

A opção pela sugestão deixa entrever que a realidade pode ser facilmente manipulada por quem detém o poder e dá as cartas.

O cineasta sul coreano Park Chan-wook desembarca com The Handmaiden (foto ao lado), um provocante jogo de aparências e mentiras tendo como pano de fundo uma Coreia ocupada pelos japoneses, nos anos 1930.

Inspirada num romance inglês, a narrativa em quebra-cabeças se dilui em três capítulos, cada um mostrando um ponto de vista diferente.  

Como num thriller hitchcockiano, o espectador é seduzido pelas artimanhas dos personagens, seus golpes, traições e crueldades. 

Se a violência física aqui é praticamente inexistente, a emocional mostra suas garras.

Obra psicológica perturbadora, clara alusão à perversão e repreensão sexual na cultura japonesa.

Depois da Tempestade, do diretor japonês Hirokazu Koreeda, captura pela emoção.

Simples e melancólica, a trama é centrada num escritor decadente que se esforça para reconquistar o amor da ex-mulher e o respeito da família.

Por causa de um tufão, eles voltam a se reunir brevemente ao longo de uma noite, mas o encontro, que desperta algumas lembranças e gestos de carinho, não é o suficiente para uma possível reconstrução familiar.

Nesta 40ª edição, três grandes diretores lograram atenção especial.


Um dos cineastas mais humanistas do cinema, o polonês Andrzej Wajda (1916-2016) assina dezessete títulos, entre eles, Cinzas e Diamantes (1958), O Homem de Mármore (1976), O Homem de Ferro (1981) e Walesa (2013).

Em sua filmografia emergem substancialmente questões da Segunda Guerra, do totalitarismo e da transformação democrática na Europa Central.

São produções que retratam, pelo viés artístico, importantes períodos da história contemporânea polonesa, sempre estabelecendo um contraponto entre o indivíduo e o regime opressor. 

Com fotografia em preto e branco, O Homem de Mármore (foto acima) apresenta uma jovem cineasta lutando para emplacar um documentário sobre um líder proletário que, tornado herói stalinista, acabou vítima do sistema e desapareceu.

De certa forma, o filme antecipou o movimento Solidariedade e a revolução nos estaleiros de Gdansk.

Último dos grandes cineastas europeus a beber na fonte do existencialismo, o influente polonês Krzysztof Kieślowski (1941-1996) (foto ao lado) está representado pela sua obra-prima Decálogo, releitura contemporânea dos Dez Mandamentos.

Nessa série, originalmente produzida para a televisão polonesa, o diretor propõe uma reflexão multifacetada acerca de temas  universais da condição humana, como amor, culpa, solidão, amizade, tristeza, ética e medo.

Todas as dez histórias têm como cenário único um conjunto residencial localizado em Varsóvia, capital da Polônia.

Em um dos episódios, mulher engravida do homem com quem mantém caso extraconjugal e resolve abortar se o seu marido, gravemente enfermo, se restabelecer.

Em outro, professor universitário se vê dividido entre a crença científica e a fé religiosa.

Num dos mais impactantes, desempregado mata brutalmente um taxista sem motivo aparente.

Há ainda uma mulher desesperada que, na noite de Natal, bate à porta da casa de um ex-amante e pede o seu auxílio para encontrar o cônjuge desaparecido. 

Grife do cinema político italiano, autor de filmes desafiadores como Bom Dia, Noite (2003), De Punhos Cerrados (1965) e Diabo no Corpo (1986), o diretor italiano Marco Bellochio marca presença no festival.

Em seu mais recente trabalho, Belos Sonhos (foto ao lado), ele investiga a figura materna, por meio da sua ausência ao longo da vida do protagonista.

A cicatriz do amor maternal desaparecido assombra o personagem, nascido em uma família disfuncional, que viveu muito tempo sem saber exatamente o que aconteceu com a sua progenitora.

Não é o mistério sobre a morte mal explicada dela que dá substância ao enredo, mas o processo psicológico que assola Massimo a partir desse evento.

O filme serpenteia para frente e para trás, do tempo em que era criança, quando dançava twist com a mãe, ao retorno, já na meia-idade, ao apartamento da família, com a missão de esvaziá-lo.

Bellochio tece pungente e doloroso tributo à idealização do amor materno.   

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