As mil faces de Maria

A atriz, cantora, compositora e diretora portuguesa Maria de Medeiros, 48 anos, parece ter virado brasileira, mesmo residindo em Paris há 25 anos. Desde março está em turnê nacional com a peça Aos Nossos Filhos, de Laura Castro, que deve estender a temporada por outras cidades durante mais algumas semanas. O papel de ex-revolucionária em conflito com a filha lhe rendeu indicação à melhor atriz pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). A distinção se soma a outro. Há pouco o seu documentário Repare Bem, sobre a trajetória de mulheres vítimas da ditadura brasileira, faturou o prêmio de melhor longa estrangeiro no prestigiado Festival de Cinema de Gramado (RS).

Em cartaz no País, depois de rodar por vários festivais, o filme foi uma proposta da Comissão de Anistia. “Pedir desculpas públicas em nome do Estado às pessoas que foram vítimas da violência política é uma forma de oferecer a elas a possibilidade de reconstruírem a sua identidade perdida na clandestinidade”, avalia. A artista também tem exibido desenvoltura como cantora e compositora em shows pontuais, onde apresenta o repertório de Pássaros Eternos, o terceiro álbum de sua carreira musical. O disco reúne composições próprias e colheu elogios da crítica especializada.  

Maria se tornou conhecida do grande público em Pulp Fiction – Tempo de Violência (1994), do diretor cult Quentin Tarantino, no qual encarnou uma mulher insegura. Um pouco antes, deu vida à transgressora escritora Anais Nin em Henry & June (1990), de Phillip Kauffmann. Ela também atuou no cinema nacional, em O Xangô de Baker Street (2001), de Miguel Faria Jr., e O Contador de Histórias (2009), de Luiz Villaça. Como diretora, assinou o prestigiado longa metragem Capitães de Abril (2000), contundente leitura sobre a revolução que dinamitou a ditadura de quase meio século de Salazar em Portugal.

Nesta entrevista, a atriz passeia pela carreira, promove um balanço da Revolução dos Cravos, fala de sua incursão pela música e das coincidências que têm cercado seus trabalhos. “Escolhi uma profissão que me possibilita viajar e a estar em contato com várias culturas. Tenho a convicção de que um artista pode se expressar em diferentes linguagens.”

 

Por Edgar Olimpio de Souza

 

Por ser a mais internacional das atrizes portuguesas, isso gera algum tipo de responsabilidade?

Como eu adoro viajar pelo mundo e tenho feito cinema em alguns países, acabo sendo indiretamente uma representante da cultura portuguesa. Mas isso não quer dizer que eu tenha assumido esse papel.

 

O seu primeiro longa metragem como diretora, Capitães de Abril, tratava da Revolução dos Cravos. Como você acompanhou todo aquele episódio?

Eu queria muito fazer esse filme porque me dei conta do privilégio de ter vivido de perto a chegada da democracia em Portugal depois de 48 anos de ditadura salazarista, a mais longa da Europa. O que aconteceu em 1974 foi extraordinário, atípico, um exemplo a ser seguido. Militares profissionais, participantes na guerra colonial na África, iniciaram um movimento que acabou depondo o regime ditatorial. Não usaram da violência e abriram mão do poder conquistado. Conheci grande parte dos protagonistas dessa revolução e tive acesso aos livros que eles escreveram. Por causa do filme, fui muito atacada e ganhei inimigos, especialmente por ser atriz, o que era visto como uma atividade fútil. Eu assumi o ponto de vista dos capitães de abril. 

 

Quatro décadas depois, que balanço você faz daquele acontecimento político?

A revolução portuguesa mudou o destino de nosso país e a vida pessoal de muitos portugueses. Minha família vivia em Viena, meus pais eram exilados voluntários. Quando regressamos, eu tinha nove anos, experimentamos um choque cultural. A Áustria era limpa e organizada, bem diferente de Portugal. O país vivia um momento único em sua história. Quanto mais o tempo passa, mais me interessa o espírito humanista e pacifista que norteou aquele período. A instauração da democracia civil marcou a minha geração. Na escola, na hora de brigar ou discutir com um colega, a gente o xingava de “capitalista”

 

De alguma forma, o documentário Repare Bem, que você dirigiu, poderia ser visto como uma espécie de continuação de Capitães de Abril?

Eu acredito que sim. Capitães de Abril mostrava a chegada da democracia a Portugal. Repare Bem reforça a democracia no Brasil. Pedir desculpas públicas em nome do Estado às pessoas que foram vítimas da violência política é uma forma de oferecer a elas a possibilidade de reconstruírem a sua identidade perdida na clandestinidade. O documentário nasceu como uma proposta da Comissão de Anistia e Reparação do Ministério da Justiça.

 

Como foi lidar com um tema tão dolorido?

Complicado, porque eu e a equipe tínhamos de nos policiar para não chorar e atrapalhar as filmagens. O filme recupera a história da ex-guerrilheira Denise Crispim e de sua filha Eduarda. O depoimento da Denise foi intenso. Ela reviveu sua experiência brutal nos porões da ditadura militar. Falou do companheiro Eduardo Leite, o Bacuri, que foi torturado barbaramente e morto com um golpe na cabeça pelos militares. Denise fugiu para o Chile e foi apanhada pelo golpe militar de Pinochet. Então foi parar na Itália. Histórias de luta contra os autoritarismos de Estado me interessam muito porque nasci em uma família libertária. 

 

A arte deve produzir reflexão ou tem a função de entretenimento?                     

Enquanto entretenimento não me interessa, fico com o sentimento de que perdi ou me roubaram tempo. Se uma pessoa sai de um cinema ou teatro, por exemplo, do mesmo jeito que entrou, era preferível ter lido um livro no lugar. Gosto da arte que desperta, transforma, enriquece, que reflete a nossa realidade. Não acredito na arte produzida para distrair. Acho também que a arte está simbolizada na figura do bufão nas peças de Shakespeare, aquela criatura que, estando ao lado do rei, diz que ele é vil, mal, injusto.

 

Sua relação com a crítica é cordial?

Eu dirigi um documentário despretensioso, Je t'aime...moi non plus: Artistes et critiques (2003), que aborda a relação sempre tumultuada entre os cineastas e os críticos. Já participei de juris de festivais de cinema ao lado de críticos que assistem milhares de filmes por ano e continuam sentindo a mesma paixão pelo ofício. É sempre um mistério para mim como pessoas com gostos iguais veem um mesmo longa e o analisam de maneiras completamente diferentes. Concorde-se ou não com a crítica, o espaço de discussão é sempre importante, produtivo e construtivo.  

 

O que acha da mídia de celebridades? Já foi perseguida por paparazzis?    

Sempre fui fascinada pelas belas artes e o cinema entrou na minha vida de forma inesperada. Eu era adolescente quando estreei no filme Silvestre (1982), do diretor português João César Monteiro. Ou seja, eu me atraí por um cinema de autor, pela escrita, nunca me liguei em glamour. Sou uma atriz, não uma estrela, daí que nunca tive problemas com paparazzis. Além disso, sou muito clara e transparente na vida, o que diminui bastante a possibilidade de ser vítima, por exemplo, de reportagens distorcidas sobre algo que falei ou fiz. Minha carreira é impermeável a isso.

 

O que tem mais chamado a sua atenção no cinema feito atualmente pelo mundo?

Se você freqüenta uma mostra de cinema descobre produções interessantes de países bem diferentes, que muitas vezes não chegam ou passam rapidamente pelo circuito comercial. Na Europa, a crise econômica está oprimindo a produção artística. Tenho acompanhado com atenção o que vem da Romênia. Achei fantástico Além das Montanhas, de Cristian Mungiu, que já havia feito outra obra prima, 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias. É incrível como ele conseguiu se superar. Gosto também da quadrinista iraniana Majarie Satrapi, que dirigiu a animação Persépolis. Trabalhei com ela em Galinha com Ameixas. Os diretores que vieram do universo das histórias em quadrinhos são muito criativos. Eles oferecem novos olhares e perspectivas ao cinema.

  

A peça Aos Nossos Filhos trata de um casal de mães lésbicas. Por que as relações homoafetivas ainda geram polêmica?

A democracia deveria valer para todas as instâncias da vida. Temos de aceitar que as pessoas queiram viver de seu jeito. A peça da Laura Castro fala das divergências entre mãe e filha em relação à política, sexo e maternidade. Eu faço uma ex-revolucionária que se considera “cabeça aberta”, mas não compreende a filha homossexual, vivida pela Laura, disposta a ser mãe de uma criança gestada no ventre da companheira.

 

As convicções da mãe desmoronam diante da decisão da filha...

Exatamente. O texto põe o dedo na ferida, apresenta argumentos convincentes de ambos os lados. Eu estou aprendendo muito. O curioso é a reação do público. Tem sessões em que eles se identificam mais com o meu personagem, em outras se dá o contrário. Há vezes em que a platéia ri nos momentos trágicos. A peça tem muito em comum com o documentário Repare Bem. Ambos abordam as consequências da ditadura. 

 

Você já gravou três álbuns como cantora, embora não tenha formação específica. Como foi incorporar a música em sua carreira? 

Estou ganhando confiança a cada disco desde a primeira gravação, mas tenho consciência de que sou uma atriz cantando. Já atuei em vários musicais na França, cheguei a trabalhar em um espetáculo de rock & roll acrobático, que é possível fazer quando se tem vinte anos de idade. O que me ajuda é que estou cercado de ótimos músicos. O processo foi difícil porque eu me intimidava diante de meu pai, músico clássico, pianista e maestro, e de minha irmã caçula, ótima violinista. Eu achava que era uma arte que só eles dominavam, que eu não teria nível para tanto. Depois perdi a vergonha.

 

Em Pássaros Eternos, pela primeira vez você gravou composições próprias... 

Só duas composições não são minhas. Busquei os gêneros que mais me impactam: samba, fado, blues, alguma coisa de flamenco. Aliás, cresci ouvindo MPB, a melhor música do mundo. No primeiro álbum, A Little More Blue (2007), prestei homenagem a artistas brasileiros como Chico Buarque e Caetano Veloso. No segundo, Penínsulas & Continentes (2010), explorei outras influências. Pássaros Eternos cruza fronteiras musicais e tem vários sotaques.  

 

Onde se sente mais à vontade: cinema, teatro ou música?

Penso que as três artes estão interligadas. Eu me inspirei nos relatos de Denise Crispim em Repare Bem para gravar, em Pássaros Eternos, a canção Aos Nossos Filhos, de Ivan Lins e Victor Martins. Na peça Aos Nossos Filhos, eu interpreto uma mulher que lutou contra a ditadura militar brasileira. Essas coincidências indicam um diálogo muito estreito entre cinema, teatro e música. Há coisas que descubro no teatro que vou usar no cinema, coisas que aprendo na música que levo para o teatro, coisas que experimento no cinema que transporto para a música.

 

É verdade essa história de que você tem planos de atuar em telenovela brasileira?

Em uma entrevista me perguntaram se eu aceitaria trabalhar em novelas. Como a minha vida é cheia de surpresas, se surgisse um personagem ou situação interessante, até poderia experimentar. Sou super fã da técnica de interpretação dos atores brasileiros. Muitos são egressos da escola teatral e incorporam ainda a conhecida pujança tropical, o espírito de desbunde. Outro dia vi o Marco Nanini e a Marieta Severo na televisão e fiquei encantada. Eles são geniais. 

 

Morar nos Estados Unidos é um sonho de muitos atores, mas você não arreda pé da França...  

Eu vivo em Paris há 25 anos, tenho dupla nacionalidade. Adoro trabalhar nos Estados Unidos, lá também tem diretores que buscam uma estética autoral, uma linguagem própria, uma percepção artística do mundo. No ano passado, estive em Nova York filmando Encontros com um jovem poeta, de Rudy Barichello, sobre o dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Tem atores europeus que se dão muito bem em Hollywood. O Javier Bardem mostrou toda a sua arte e talento lá. Só é preciso ter cuidado para não virar um estereótipo. Escolhi uma profissão que me possibilita viajar e estar em contato com várias culturas. Um artista pode se expressar em diferentes linguagens. Quanto mais o tempo avança, menos nacionalista eu sou e mais estrangeira me sinto.

 

Tem alguma coisa que a irrita em Paris?                                                                              

Muitas. Virei uma típica francesa, até aprendi a xingar em francês. Eles adoram uma boa guerra cotidiana, são racionais e passionais ao mesmo tempo, arrumam briga só pelo prazer da reconciliação. Também tenho o estilo quadrado do austríaco na hora de trabalhar. E sou meio contemplativa e às vezes melancólica, como uma boa portuguesa.

 

Daqui a dois anos você completa meio século de vida. Alguma crise em vista?

Só estou um pouco resignada. Aos vinte, trinta anos, é tudo muito divertido, até o aparecimento de uma pequena ruguinha. Depois, você não acha tanta graça assim. Mas o que eu posso fazer?

 

Veja trecho do show Pássaros Eternos:

 

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