EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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DVD: Cria Cuervos

“Cria corvos e eles te arrancarão os olhos” é um velho ditado espanhol usado por Carlos Saura para contar a história de Ana, uma criança atormentada pela hostilidade, medo e angústia. Delicadamente o diretor espanhol detona o mito da inocência infantil, critica a família sagrada e ironiza nossa imagem idealizada da infância, de uma criança incapaz de desejar o mal. A sutileza com que Saura tratou o tema levou-o a ser considerado um dos melhores cineastas do seu tempo, ganhando o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 1976. Em Escritores Criativos e Devaneio (1908), Freud se perguntava sobre as fontes da criação literária e descobriu que são as fantasias – as mesmas que alimentam as brincadeiras das crianças. É na fantasia que vemos Ana se vingar de seus inimigos, despejando-lhes sua hostilidade e sua dolorosa angústia de abandono e separação por uma mãe morta precocemente e que são seu veneno terrível.

Nas sequências iniciais do filme assistimos à morte e ao velório do pai de Ana, enquanto a voz da menina agora adulta passeia por suas lembranças, misturando passado e presente. Como o dia em que se recusou a atender à ordem da mãe para jogar fora uma lata velha que já não servia para nada. Curiosa, Ana perguntou se era veneno o que tinha lá dentro e a mãe respondeu, sorrindo: “Sim, um veneno fortíssimo. Pode matar um elefante com apenas uma colher”. Ana conta: “Eu fiquei chocada. E não sei exatamente por que não obedeci minha mãe e guardei a caixa com o veneno. Seria porque queria matar meu pai? Já me fiz essa pergunta centenas de vezes e todas as respostas que me ocorrem na hora, agora, vinte anos depois, são simples demais e insuficientes. Só me lembro claramente de estar convencida de que meu pai foi o responsável por toda a tristeza que afligiu minha mãe nos últimos anos de sua vida. Tinha certeza de que foi ele, e só ele, quem provocou sua doença e morte. Não entendo como há pessoas que dizem que a infância é a época mais feliz de suas vidas. Em todo caso, para mim não foi. E talvez seja por isso que eu não acredite em um paraíso infantil e nem na inocência nem na bondade natural das crianças. Lembro-me de minha infância como um período longo, interminável e triste, cheio de medo”.

Os olhos de Ana fulminam o inimigo, que logo será impiedosamente convidado a beber do seu “veneno terrível”. Depois de uma discussão com Tia Paulina vemos nascer na pequena a mesma vontade de matar que a fizera “assassinar” o pai: a parricida despeja seu veneno no leite da tia para descobrir, logo na manhã seguinte, que sua vítima está vivíssima e muito bem. Em outra ocasião – seria piedade? – nossa bondosa assassina proporá o mesmo remédio para a avó muda, paralítica e já cansada de viver. “Você quer morrer? Quer que eu a ajude a morrer?”, pergunta a neta. Com um gesto da cabeça a avó diz que sim. Ana sai e volta com seu “veneno terrível, que pode matar um elefante com uma colher” e em cujo rótulo a avó lê “bicarbonato de sódio”. Sorri melancolicamente, lamentando a eutanásia generosa e impossível. Tecendo sua história com elementos do seu mundo onírico, recebendo os seres que habitam o reino dos sonhos, Ana exerce sua onipotência, sua soberania e seu despotismo. Com suavidade e delicadeza, essa criança adorável demarca seu poder: “Morra!”, ela ordena, sob o fundo – onipresente nos filmes do diretor espanhol – da tirania adulta imposta pela ditadura franquista sobre a qual Saura costumava derramar sua crítica irônica.

A criança é uma projeção do narcisismo dos pais. O filho do rei, se rei não é, está em luta pelo trono. Cria corvos e eles te arrancarão os olhos. Para a psicanálise todos nós temos de lidar com impulsos sexuais e agressivos provenientes do inconsciente e que se opõem a outros aspectos da nossa própria vida psíquica. A realização imediata desses impulsos provoca conflito e angústia. E defesas contra essa angústia. Isso nos leva a criar condições para satisfazer esses impulsos inconscientes. Uma coisa é dar vazão imediata a impulsos hostis que se manifestam como raiva ou ciúme. Outra, diferente, é fantasiar que o inofensivo bicarbonato de sódio que tenho em meus guardados secretos é um “veneno terrível que pode matar um elefante com uma colher” e oferecê-lo a quem acuso por meus sofrimentos. É por meio de fantasias, e não de atos, que Ana expressa os seus impulsos hostis. Seus atos ou suas brincadeiras são alimentados por e apoiados nas fantasias – as mesmas que, segundo Freud, alimentam a criação literária e artística. Como o sonho e a linguagem, as fantasias de Ana têm o poder de fazer ser, de materializar uma realidade à maneira de qualquer ato da bruxaria: um simples abracadabra é capaz de transformar o príncipe em sapo. A magia é assim: a uma simples frase, “abre-te Sésamo”, a caverna abre sua boca devoradora. É dessas fantasias que emerge a magia do “Morra!” ou do “veneno terrível” de Ana, pelos quais ela realiza seus impulsos hostis. Como uma Xerazade moderna, Saura nos convida a entrar nas mil e uma noites de Ana, no seu mundo onírico que é também do diretor e de todos nós. Não é por isso que continua a nos tocar e encantar?

(Marcia Neder – psicóloga e psicanalista / O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Texto inspirado em artigo de Marcia Neder publicado na Revista Insight Inteligência - http://www.insightnet.com.br/inteligencia/50/PDFs/06.pdf)

 

Cria Cuervos

Título Original: Cria Cuervos (Espanha, 1976)

Gênero: Drama, 107 min

Direção: Carlos Saura

Elenco: Geraldine Chaplin, Ana Torrent, Mónica Randall, Héctor Altério e outros

Distribuidora: Platina Filmes

 

Veja cenas do filme:

 


 

 

 

 

 

 

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