EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Marcia: "A criança não é o anjinho que idealizamos"

O mundo hoje vive o reinado das crianças, que se tornaram pequenos imperadores e ditam o comportamento dos adultos. Se não têm um desejo atendido de imediato, especialmente em situações como de compras em supermercados e shoppings, elas se valem de acessos de berros e choro forçado que costumam paralisar os adultos. O diagnóstico, feito de forma enfática, é da psicanalista Marcia Neder. “Como não aceitam mais as regras, tornaram-se pequenos imperadores em tempos republicanos”, reitera ela, formada em Psicologia Clínica pela Universidade Santa Úrsula do Rio de Janeiro, com mestrado na mesma área pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Pós-Doutorado nessa especialização pela PUC de São Paulo.

Autora de Psicanálise e EducaçãoLaços Refeitos (1998) e A Arte de Formar: o feminino, o infantil e o epistemológico (2002), a psicanalista prepara-se agora para lançar seu terceiro livro, Édipo Tirano: o feminino e o poder nas novas famílias, no qual discorre, entre outros assuntos correlatos, sobre a excessiva valorização do infantil no mundo moderno. “Esse novo regime social parecia impensável tempos atrás. Hoje as crianças são as déspotas mirins do século XX”, ressalta ela, que tem agenda carregada de palestras, leciona na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e atua na Casa do Saber, no Rio de Janeiro. Nesta entrevista, Marcia fala sobre a idealização da infância, passeia pelos contos de fadas, explica a crueldade infantil e mostra o porquê dos pais estarem desorientados diante do novo comportamento dos filhos.     

 

Por que se diz que a infância é a época mais feliz da nossa vida?

Ela é idealizada assim pela suposição de que nesta fase não experimentaríamos dores, inquietações e sofrimentos. Muitos pais, professores, educadores e adultos em geral tentam impedir que seus filhos entrem em contato com as malvadezas e crueldades de personagens históricos de contos de fadas que fazem parte do imaginário cultural há séculos. Nada de bruxa, ogro, bicho papão, cuca, boi da cara preta, gigante ou qualquer outra figura do mal que viria provocar um tormento supostamente alheio ao universo infantil.

Mas o sofrimento não faz parte do processo de crescimento?

Toda criança sofre da angústia do abandono e da separação, seja pela chegada de um invasor na família - o nascimento de um irmãozinho, por exemplo - ou a sua entrada na escola. É para amenizar essa ansiedade, também (re) vivida pela mãe e pelo pai, que a criança chama a professora de “tia”, aproximando assim esse mundo extrafamiliar de seu reino familiar.

Na verdade, a infância é cheia de dores existenciais?

Exatamente. A criança sofre o conflito da insuportável transformação da mãe-fada adorada em uma mãe-bruxa quando esta recusa algo para ela. Por incrível que pareça, a existência humana está bem mais próxima dos contos de fadas do que dessa criança feliz que passamos a idealizar a partir do século XVIII.  

Os contos de fadas são vistos como histórias pueris, que finalizam com uma moral...

Um conto como Pele de Asno, de Perrault (1694), por exemplo, trata explicitamente do incesto: um rei deseja casar-se com a própria filha após a morte da esposa. A versão original de Pinóquio, de Carlo Collodi (1883), terminava tragicamente com o assassinato do menino de madeira que queria ser humano e acabava morto pelos dois homens que o perseguiam no bosque. Inúmeros contos começam com a morte da mãe ou do pai e as dores daí geradas. E todos eles tratam das angústias típicas vividas por cada humano desde o seu nascimento e desencadeadas por fantasias que envolvem sua separação em relação aos pais, seus conflitos edípicos e rivalidades fraternas, suas perdas e também suas conquistas.

Por que a criança sempre foi poupada do chamado mundo real?  

Ao ser “confinada” nas escolas a partir do século XVIII, a criança deixou o mundo adulto e passou  a ser projetada como um ser inocente, puro e feliz. Logo, ela seria uma figura estranha à crueldade, ao conflito, às paixões e à sexualidade que a psicanálise freudiana veio, antipaticamente, confrontar. Mas a criança de carne e osso com a qual convivemos escancara o contrário disso: basta uma ida a um shopping ou a um supermercado para observarmos aquelas situações típicas de crianças, roxas do mais genuíno ódio, exigindo satisfação imediata de seus desejos.

As tais inocência e bondade infantis são um mito?

Esse é um grande problema que tem paralisado pais aflitos diante do choro forçado e dos acessos de berros de seus filhos pequenos. A descoberta freudiana da criança edípica, tomada por impulsos amorosos e agressivos dirigidos aos adultos que dela cuidam, mostrou que esse ser inocente e bonzinho é uma farsa. A psicanálise provou que as relações familiares não são tecidas por amor e inocência. O complexo de Édipo mostra uma criança com arroubos libidinais incestuosos e hostis. Há amor, raiva, ciúme, inveja e rivalidade entre pais e filhos.

Então há uma guerra entre pais e filhos?

O conflito sempre existiu entre as duas partes. A lenda de Édipo, que antecede a Era Cristã, é uma metáfora da criança e da família. Ela encena essa guerra, esse ódio entre pais e filhos: Laio é o algoz do filho Édipo, condenando-o à morte logo que nasceu, com o consentimento da mãe, Jocasta. A história da família é a história dessa guerra da qual a criança saiu vitoriosa.

Esta supremacia da criança sempre existiu?

Desde a antiguidade até o início dos tempos modernos, no século XVIII, a criança foi vista como um ser que inspira medo e repulsa. Durante séculos, a filosofia e a teologia desenharam uma representação terrível da infância, reproduzindo não só a imagem de uma criança diabólica e maligna como convocando os adultos a uma luta sem tréguas contra o infantil. Daí o parricídio (quando a criança mata o pai ou a mãe) ser um crime severamente punido desde a antiguidade. Diferentemente do infanticídio (assassínio do filho por parte do pai ou da mãe), que permaneceu uma prática comum tanto na Grécia quanto em Roma. No Ocidente, esse tipo de crime foi tolerado até fins do século XVII.

Pais que abandonam ou matam seus filhos, infelizmente, é mais comum do que se imagina...

Na história do Ocidente, esse tipo de atitude é relativamente comum. No século XIII, por exemplo, sob a influência da Igreja Católica, foram criadas as Casas dos Expostos (ilustração ao lado) ou Casas da Roda, que acolhiam as crianças enjeitadas ou frutos de relações inconvenientes. Trata-se de um termo que vem desde a antiguidade para designar as crianças destinadas à “exposição”, isto é, ao abandono à própria sorte em algum lugar ermo, como Édipo no Monte Citerão. Este dispositivo chegou ao Brasil no século XVIII e foi instalado nas Santas Casas de Misericórdia, onde funcionaram até meados do século XX. A Casa da Roda do Rio de Janeiro foi fechada em 1938, a de Porto Alegre em 1940 e as de São Paulo e Salvador na década de 1950.

No fundo, é uma ironia tratar a infância como uma fase de intensa felicidade...

Em seu magnífico filme Cria Cuervos (foto de abertura), o cineasta espanhol Carlos Saura revela justamente o lado sombrio dessa infância supostamente feliz. Ele detona o mito da inocência infantil, critica a família sagrada e ironiza a nossa imagem idealizada da infância, de uma criança incapaz de desejar o mal. Na trama, uma criança encantadora é atormentada pela hostilidade, pelo medo e pela angústia. Quando adulta, ela faz uma reflexão: “A minha infância foi um período longo, interminável e triste, cheio de medos”.  

Em muitos filmes de terror, aliás, a criança é fonte privilegiada do mal...

Até aceitamos isso com naturalidade. No longa-metragem O Anjo Malvado (1993) (foto ao lado), do diretor Joseph Ruben, o menino Mark Evans (Elijah Wood) passa o tempo todo lutando para fazer os adultos acreditarem que uma criança possa ter índole tão má como seu primo Henry Evans (Macaulay Culkin), que o escraviza de forma perversa. Atrás daquele rosto de anjo esconde-se um verdadeiro demônio. Nesse filme é impressionante, e mesmo chocante, a ausência de um adulto no cotidiano de Henry e da irmã. O que esperar de crianças abandonadas a si mesmas, sem um adulto que as ajude a conter seus impulsos destrutivos? Isso mesmo: um Henry Evans.

A crueldade infantil pode ser disfarçada sob um rosto angelical?

Angelical e criança são praticamente sinônimos. Se nos lembrarmos que um anjo foi expulso do céu para habitar o reino noturno, poderemos voar na ambivalência desse substantivo. Satanás, o Tinhoso, o Maldito que nos espreita, a Besta Fera que nos ronda, o demônio, representa a parte sombria do nosso ser. Freud reconheceu a crueldade como própria ao caráter infantil e observou que a criança só começa a ter noção do que é certo e do que é errado a partir dos cinco ou seis anos.

Crianças mandam em casa e influenciam nas decisões dos pais?

Sim. Elas são hoje plenipotenciárias e usam e abusam de sua arma poderosa: os ataques de birra e cenas em público que envergonham e neutralizam seus pais. É notável a ampliação do mercado de consumo infantil. Sabedora do poder das crianças sobre os pais, a publicidade modelou e explora esse nicho. Não à toa vivemos discutindo limites para o exercício desse tipo de publicidade e querendo buscar padrões éticos.

Por que o adulto reage com permissividade ou inércia diante da birra de uma criança?

Contrariar uma criança é ver a raiva transformá-la numa daquelas criaturas de filmes de terror. O adulto fica paralisado pela angústia, pela raiva, pela vergonha quando é confrontado com o ódio do ser que ele idealiza como inocente. As crianças usam e abusam dessa arma. Por outro lado, por meio da permissividade e da falta de limites praticado por esses soberanos mirins, o adulto satisfaz seu narcisismo. Os privilégios que concedemos aos nossos filhos testemunham a nossa supremacia, a nossa realeza.

Os pais estão confusos e desorientados hoje em dia?

Muito. Essa desorientação está espalhada pelos sites na internet como antes se multiplicavam em reportagens dedicadas ao tema pelas revistas semanais. Em uma palestra que proferi numa escola no Rio de Janeiro, na qual desenvolvo um trabalho que vem se revelando extremamente fecundo (Favinho e Mel), foi muito interessante ouvir os pais e suas aflições, o que é compreensível, já que a família mudou e a escola também. Como lidar com essa criança que não aceita regras, que acha que pode fazer, ter e ser tudo o que quiser? O que fazer com esses pequenos imperadores reinando em tempos republicanos? Foi justamente o título que dei a essa palestra. A criança é o déspota mirim do século XX.

Muitos professores são insultados e até agredidos por alunos pequenos...

As relações entre adultos e crianças/adolescentes, outrora organizadas verticalmente pelo respeito e hierarquia, transformaram-se em relações horizontais nas quais “somos todos iguais”. O que antes era coibido com um simples “não”, hoje exige uma argumentação com réplicas e tréplicas intermináveis.

A relação ficou mais difícil?

Isso mesmo. Nesse novo regime social, que denomino de pedocracia, o poder passou da mão dos adultos para o das crianças, dos filhos e, por extensão, dos alunos. Nós lhes concedemos o livre exercício de sua agressividade. É nesse contexto extremamente difícil que os professores têm de exercer sua função educadora. Uma função limitada pelo narcisismo dos pais, para quem, em geral, “meu filho sempre tem razão”, e pelo narcisismo da criança.

Por que hoje em dia é comum a prática do bullying nas escolas?

É uma questão bem complicada. A superficialidade com que tratam o assunto sugere que de repente nossas crianças transformaram-se em pequenos demônios. Poderíamos percorrer vários fios implicados no tema para mostrar que o buraco é bem mais em baixo. A permissividade dos adultos é permissividade também em relação à agressividade do seu filho, liberado para bater, morder, chutar, xingar e desrespeitar quem ele quiser, como marca da supremacia dos pais, como se fosse uma espécie de brasão de família.

De certa forma, o bulliyng é incentivado indiretamente pelos adultos?

A presença ou ausência dos adultos é tão determinante para a ocorrência desse tipo de violência física ou psicológica quanto de qualquer outro comportamento infantil e juvenil. O bullying (foto abaixo) põe em evidência a velha luta pelo domínio do outro que assombra toda relação humana. Osuperior, seja física, numérica, social, econômica ou narcisicamente, aproveita-se de sua autoridade para impor-se sobre o outro. Este pode ser o garoto mais novo ou o mais solitário, o colega “diferente da média idealizada por uma sociedade” ou o gênero feminino que, desde os gregos, tem sido considerado inferior e, portanto, “naturalmente” destinado à dominação.

Por isso é “natural” os pais pedirem para os filhos reagirem...

Depende muito dos adultos e de como lidam com seu próprio narcisismo. É comum ouvir pais incitando seus filhos a reagir a uma violência, sentida por eles mesmos como pessoal, uma ferida no seu narcisismo. Preferem agir assim ao invés de oferecer à criança outros meios de descarga da agressividade e de proteção. As situações de agressão são muito variáveis, porém o que tem se tornado invariável é a ausência, não necessariamente física, mas psicológica, do adulto no universo da criança e do jovem. Conversar sempre e não só em momentos de crise ou de risco, é uma forma eficiente de estar presente psicologicamente na vida da criança. Mas, atenção: conversar é também saber ouvir o interlocutor.

(Foto de abertura: Filme Cria Cuervos / Divulgação)

(Foto de Márcia Neder feita por Ivo Vicentim)

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