Teatro: Outros Tempos

A rotina de um casal, que vive tranquilamente em uma isolada casa à beira mar, é subitamente abalada com a chegada de uma hóspede. Ela é amiga da anfitriã, ambas não se viam há vinte anos e o marido está curioso para conhecê-la. O inquietante na comédia de humor negro do dramaturgo inglês Harold Pinter é que os momentos divertidos da juventude, inevitavelmente evocados nesse reencontro, não serão lembrados da mesma forma pelos personagens. No texto, que ganhou montagem instigante assinada por Pedro Freire, os relatos se revelam inconciliáveis. Não são faces diferentes dos mesmos episódios, diga-se, mas histórias contadas e recontadas que embalam a tese de que a memória tem um caráter cambiante. Com poucas palavras, pausas eloqüentes e movimentos minimalistas, a trama expõe as fissuras no casamento de Kate e Deeley durante a visita de Anna. Mais do que explicitar a fragilidade no interior desse relacionamento, a presença de uma terceira pessoa no ambiente irá despertar uma disputa nem sempre disfarçada pelo domínio sobre os acontecimentos do passado. E, para isso, vale embelezar e retocar as lembranças. Não à toa, um dos personagens confessa, ao descrever ter visto um homem chorando à noite no quarto onde dormia, que se recorda de fatos que podem, afinal, nunca terem acontecido.

Pior que isso. A peça escancara que a mistura de memória e desejo serve tanto para Deeley quanto Anna entregarem-se a uma competição crescente pela posse de Kate, numa espécie de jogo predatório. As armas empregadas são o sexo, a insinuação, doses de crueldade e porções de cinismo emocional. A batalha transcorre em uma única noite, preenchida por lembranças de canções, endereços antigos e filmes. Uma determinada sessão de cinema, nos relatos de Deeley, marcou o dia em que ele conheceu Kate, única espectadora ali presente. De lá, teriam ido para a cama dela. O mesmo filme, por sinal, que minutos depois Anna afirmará ter assistido primeiro ao lado dela – uma das restrições da montagem, talvez incontornável pela assumida reverência ao autor, é ter preservado a circunstância de que o texto, escrito em 1970, faça alusões aos anos 1950, ao pós-Guerra, cafés literários, músicas e longas-metragens desconhecidos do público atual.

O conhecimento de hábitos de banho de Kate também é reivindicado tanto pelo marido como pela amiga. Há no ar a sugestão de que ambas compartilhavam algo mais que roupas íntimas. Deeley também rememora uma noite no bar em que teria ficado mirando as pernas de Anna. Ele a força, inclusive, a acreditar que teriam se conhecido antes dele topar com a atual mulher. Só na sequência final, Kate, que até então não confirmara nem negara cada uma das histórias, chegando até a mencionar que se sentia morta pela maneira como estava sendo referenciada pelos outros dois, abandona sua aparente letargia. Ela assume o controle da situação ao apresentar a sua versão dos acontecimentos e demolir a narrativa até ali construída. A memória de todos seria real ou reelaborada? Kate e Anna são personalidades diferentes da mesma pessoa? Houve, de fato, a morte de um dos personagens? Novamente Harold Pinter instaura a dúvida, um dos elementos centrais na sua obra – a peça A Coleção, em cartaz em São Paulo, também segue a linha de que tudo pode não passar de uma mera fantasia ou paranóia.

A encenação simplificada, com cenografia reduzida ao necessário e iluminação nuançada de Paulo César Medeiros, exibe o trunfo de deixar a narrativa avançar sem as amarras da lógica convencional. O clima é de permanente estranheza. Pinter parece dizer que as memórias mudam conforme as necessidades e conveniências e podemos encontrar algum conforto nelas. Contudo, tais reconstruções nunca são totalmente confiáveis. Tudo acontece a poucos metros do público, em uma sala de diminutas dimensões. O espectador é mergulhado na arena, invadindo a privacidade dessas figuras que conjugam os verbos do passado como se fossem do presente. Oótimoelenco lida com as complexidades dos diálogos destilando verve, graça e desenvoltura. Em um jogo tão sutil, os menores gestos, como um novo tom de voz para mudar de assunto, um relance do olhar, adquirem uma importância exagerada. Otto Jr. incorpora Deeley com inteligência, cercando-se de cuidados para evitar que o mesmo não descambe para a prepotência – ele chega a se questionar se realmente sabe alguma coisa da esposa, seu passado e presente. Miwa Yanagizawa compõe uma Kate impermeável e absorta, de estudada calma, uma mulher que se constrói a partir das fatias de recordações dos demais. Cristina Flores desenha uma Anna simultaneamente sensual e ameaçadora – o público nunca sabe direito o que ela está pensando. Inseguros e oscilantes, os personagens dessa peça remoem a aflição de descobrirem que não são protagonistas de suas vidas.                                                                                                                         

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )                                                                 

(Foto: Dalton Valério)

 

Avaliação: Ótimo

 

Texto: Harold Pinter

Direção: Pedro Freire

Elenco: Cristina Flores, Otto Jr. e Miwa Yanagizawa (em revezamento com Paula Braun)                                                                                                                                  

Estreou: 09/05/2012                                                                                                       

Auditório Augusta (Rua Augusta, 943, Cerqueira César. Fone: 3151-4141). Quarta e quinta, 21h. Ingresso: R$ 30. Até 28 de junho.

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