EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Tribos

A família classe média retratada neste texto da dramaturga inglesa Nina Raine enfrenta sérios problemas de comunicação. O pai, Christopher, está pouco disposto a ouvir os outros. Beth, a mãe, parece só ter ouvidos para o romance que anda escrevendo. A filha, Ruth, não encontra sua voz como artista. Seu irmão, Daniel, ouve vozes que ninguém mais pode ouvir. O caçula Billy é surdo desde o nascimento e foi educado na arte da leitura labial. O que reina nesse ambiente é a pura cacofonia. No estridente e ruidoso jantar em torno de uma enorme mesa, que abre o espetáculo, ironias, insultos, cobranças e até amabilidades compõem o cardápio. O passatempo velado parece ser discutir à beira da explosão, um se sobrepondo ao outro, todos falando ao mesmo tempo. O público, que sente dificuldades em acompanhar aquela anarquia verbal, parece ansiar por momentos de silêncio, algum tipo de trégua.

O perfil disfuncional desse núcleo familiar, na eficiente e equilibrada montagem assinada pelo diretor Ulysses Cruz, é apresentado como um pequeno universo onde o diálogo é rarefeito, a linguagem é uma arma e se luta ferozmente por atenção. Ouvir e ser ouvido acabam se tornando um esforço doloroso para todos os personagens, uma prática literalmente vilipendiada. Não à toa alguém chega a perguntar por que ali ninguém fala sem gritar.  O provocativo e inteligente texto de Nina Raine é um olhar implacável, comovente e bem humorado sobre as diferentes formas de não ouvir além da surdez como, por exemplo, interpretar mal o que o interlocutor diz, escolher o que se quer ouvir ou se revelar surdo às necessidades dos outros. A peça pode ser vista também como uma poderosa metáfora para a natureza corrompida dos laços afetivos e familiares.

Basta observar o comportamento do clã doméstico. Christopher, ex-acadêmico que adora exibir suas virtudes intelectuais, é um sujeito intolerante que denigre constantemente sua esposa. Com forte presença cênica, o ator Antonio Fagundes imprime ao personagem decibéis de teimosia exasperante ao insistir que Billy deve ser tratado exatamente como qualquer outra pessoa normal e não como um deficiente. Em sua ótica, se o filho aprendesse a linguagem de sinais equivaleria a uma admissão de derrota. Amparada em performance convincente, Eliete Cigarini insufla Beth com a determinação de uma escritora que, mesmo atormentada por bloqueio criativo, não desiste de escrever um romance policial. O tema é a dissolução de uma família com disfunção notória e ela ainda não definiu ainda quem cometeu o assassinato.    

Os três filhos moram em casa e não trabalham. Na pele da evasiva Ruth, a atriz Maíra Dvorek desenha essa aspirante à cantora de ópera, que se apresenta em bares e pubs, como uma mulher perdida, sem planos claros, fracassada até no amor. Com veracidade, Guilherme Magon incorpora Daniel, um estudante de pós-graduação empenhado em desenvolver tese sobre as limitações da linguagem. Recuperando-se de um amor falido, ele é flagelado pela gagueira e por alucinações auditivas. Atento à sensibilidade exigida pelo papel, Bruno Fagundes dá vida ao surdo Billy, o filho quieto e excluído criado como se não tivesse tal deficiência. Ele luta para ganhar independência, identidade e uma voz. Cansou de ser tratado como eterna criança e quer ser visto como o adulto que se tornou. É um desafio difícil porque o ator, além de projetar camadas de emoção, precisa se comunicar usando, de forma desengonçada, as palavras que aprendeu sem ouvi-las.

A trama é impulsionada quando Billy conhece Sylvia, que tem pais surdos e está prestes a perder por completo a audição. Arieta Correa interpreta essa figura de presença ameaçadora, que irá adestrá-lo na linguagem dos surdos, atear um barril de pólvora de ressentimentos e ciúmes e desconstruir a arquitetura de comunicação vigente naquela casa. Seu desempenho intenso é temperado com nacos de sutileza – a personagem está dividida entre o novo romance e a agonia de lidar com a transição entre a palavra falada e a linguagem de sinais, o que a fará perder, por exemplo, a condição de desfrutar música clássica, uma de suas paixões.   

Ousado, mordaz e emprenhado de polêmicas politicamente incorretas, o espetáculo fisga o espectador pelo fino equilíbrio entre o sutil e o selvagem, o caos e a serenidade. A frugal direção, na contramão de malabarismos cênicos, articula com precisão os diversos jogos dramáticos. Nenhum aspecto é supervalorizado, todos têm a mesma importância na trama. A montagem se vale de um elenco sintonizado às complexidades de um texto que evolui à mercê das variações emocionais, algumas vezes desconcertantes, dos personagens. Para amplificar os sentidos, e esclarecer determinados diálogos, são utilizadas projeções de falas ao fundo palco, como legendas de um filme, para criar a sensação de como é viver nesse estado, gerar um subtexto ou traduzir pensamentos. A cenografia de Lu Bueno, configurada por um piano de caudas, mesa e cadeiras refinadas, a iluminação de Domingos Quintiliano e os figurinos de Alexandre Herchcovitch valorizam o estilo conciso e regulado da encenação. A música de André Abujamra pontua as idiossincrasias dos personagens.

Trata-se de um espetáculo que, por conter conflitos individuais devastadores, produz riso amargo. Não deixa de ser incômodo acompanhar, por exemplo, os contrastes e paradoxos manipulados pela autora – enquanto Sylvia se encontra na iminência de perder a voz, Billy está finalmente encontrando a sua, Christopher quer impor a sua voz e Daniel não consegue silenciar as vozes que o aturdem. Ainda que o texto apresse os passos para o desfecho, as entrelinhas garantem o seu interesse permanente. No mundo de hoje, efetivamente, existem pessoas que não querem ouvir. Ou que não conseguem ajustar sua própria voz com a de outro, tanto no âmbito da intimidade quanto na esfera social. A peça demarca que, muitas vezes, o significado não está no que é falado, mas naquilo que não está dito.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Jairo Goldflus)

 

Avaliação: Ótimo

 

Tribos

Texto: Nina Raine

Direção: Ulysses Cruz

Elenco: Antonio Fagundes, Bruno Fagundes, Arieta Correa, Guilherme Magon, Maíra Dvorek e Eliete Cigarini.

Estreou: 14/09/2013

Teatro Tuca (Rua Monte Alegre, 1024, Perdizes. Fone: 3670-8455). Sexta e sábado, 21h30h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 50 a R$ 80. Até 13 de dezembro.

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