3ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo

O evento, que aconteceu de 4 a 13 de março, reuniu oito espetáculos internacionais e dois brasileiros. Quatro montagens foram analisadas por este crítico:

 

(A)polônia

Indigesto em alguns momentos, excessivo em outros, mas desconcertante a maior parte do tempo. O diretor polonês Krzysztof Warlikowski propõe investigar a ideia do sacrifício que orienta a natureza humana e percorre a trajetória da humanidade. Para levar esta reflexão ao palco, ele se apropria de dois enredos da tragédia grega e de uma história real contemporânea. Aqui, estão entrelaçadas a trilogia Oresteia, de Ésquilo, Alceste, de Eurípedes, além da saga contemporânea de Apolônia Marczyńska.

A difícil montagem estabelece uma ligação conceitual entre sacrifícios místicos e um sacrifício da era moderna. Um sentido de suplício que une três mulheres, vítimas voluntárias ou forçosas de guerras, acordos infames e destino. Filha mais velha de Agamemnon e Clitemnestra, a áulica Ifigênia é enganada pelo pai e oferecida em martírio. Alceste concorda em morrer no lugar do marido Admeto, justamente no momento mais feliz da vida dele – ela chega a fazer elogios sobre os direitos dos animais durante a sua última ceia antes da morte. A terceira, Apolônia, é uma polonesa que deu a vida para salvar pelo menos 25 judeus durante a Segunda Guerra Mundial, aos escondê-los em sua casa.

A encenação de ares épicos cruza códigos e linguagens do cinema, teatro e concerto. Para dar materialidade a essa veemente meditação sobre penitências autoimpostas, o encenador promove uma miscelânea de estilos e gêneros. O que se vê é um amálgama de temas dramáticos com canções de rock executadas ao vivo, teatro de fantoches, discursos políticos, interrogatórios, projeção de imagens e atores seguidos de perto por uma câmera. Fábula, parábola, reportagens, cinema e novas mídias. Ingredientes trabalhados com graus de sátira e paródia, ambigüidades e culto às performances.

Uma estrutura que permite ainda a inserção de uma figura surreal de Heracles e a inclusão de textos como As Benevolentes, de Jonathan Littel, que serve ao falatório de Agamemnon, e A Vida dos Animais, conferência da romancista australiana Elizabeth Costello, personagem-título criada por J. M. Coetze – sua provocativa preleção resgata um conto de Kafka para abordar a crueldade com que são tratados os animais hoje em dia, e finaliza o raciocínio alertando que o Holocausto se renova a cada dia. Esta viagem pela ruína da história da humanidade transcorre em meio a uma cenografia crua e estilizada, que comporta até uma sala móvel. Pelo amplo espaço circulam atores de técnica irrepreensível, a quem são oferecidos vários momentos solos de intenso brilho.  

Atento e irrequieto, o diretor levanta mais perguntas do que respostas sobre a essência profunda do sacrifício, o direito de alguém decidir sobre a vida dos outros, o direito que temos de escolher nossas autoflagelações, culpas compartilhadas, as responsabilidades. Temas que, indiretamente, explicam a Polônia de antes e de agora. Nada como o universo da tragédia grega para reverberar tais questões, em seu mergulho nos conflitos que surgem entre o indivíduo e o poder que ele próprio criou. No instigante olhar de Warlikowski, milênios depois o homem ainda se deixa governar pela lógica da destruição.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Stefan Okolowicz)

 

Ça ira

Nenhum dos célebres revolucionários está presente em cena, como Robespierre, Saint-Just e Danton, apenas o monarca Luís XVI. Nesta montagem, pilotada pelo autor e diretor francês Joel Pommerat, em colaboração com a Compagnie Louis Brouillard, a intenção não é a personalização. O propósito é iluminar o pensamento político e mergulhar o público no âmago das discussões políticas e filosóficas que atiçaram a Revolução Francesa e fizeram eclodir o liberalismo e a democracia moderna, regada a princípios de liberdade, fraternidade e igualdade.

Trata-se de uma montagem poderosa e vulcânica, que o espectador acompanha de maneira compenetrada, mesmo submetido a quase cinco horas de encenação, distribuída ao longo de três atos. A prolongada jornada e a verborragia não servem de barreira para a compreensão do que está em jogo. Estruturada em rígidas classes sociais, a sociedade francesa da segunda metade do século 18 era composta pelo clero e a nobreza, isentos do pagamento de impostos e com poderes adquiridos para exercer cargos públicos, além do chamado Terceiro Estado, um segmento encorpado por comerciantes, camponeses, artesãos e profissionais liberais. Tributada e sem acesso a pensões governamentais, esta parcela da população revelava-se à época firmemente disposta a combater o absolutismo monárquico, os privilégios da aristocracia e da igreja e exigir um novo sistema de direitos para os cidadãos. O estopim para o recrudescimento do movimento reivindicatório ganhou força a partir de mais um pronunciamento do primeiro ministro francês, que defendia o aumento das receitas do Estado via cobrança de mais tributos. Do alto de seu poder, Luís XVI adquiria cada vez mais o perfil de uma figura flácida, consumida pela falta de ardor para salvaguardar a monarquia.

As peças do tabuleiro estão dadas. Pommerat escancara os mecanismos que regem a política, a efervescência dos intermináveis debates, os impasses construídos e as diferentes perspectivas ideológicas dos homens do poder. Na representação, os discursos tipicamente conservadores são proferidos pelos personagens que circulam à direita do palco e os de teor progressista pontificam ao lado contrário. É a famosa divisão esquerda-direita que a Revolução Francesa legou à cultura política contemporânea.  O espetáculo desnuda esse mundo tingido pela distinção de classes, regalias de uns e discriminação de outros, que, aos poucos, vai se esfarelando. A representação é prodigiosa, evolui de forma ágil e articulada, quase sem fôlego, fustigada por falas cortantes e situações de tensão à flor da pele.

Palco e platéia viram um único lugar, configurando-se uma assembléia, com a ruptura intencional da quarta parede. Alguns atores se levantam das poltronas da sala para falar ou para subir ao palco, outros permanecem nos corredores. Convenções teatrais são solenemente violadas. Nesse parlamento ficcional, aplausos, vaias e insultos rasgam a atmosfera. Por vezes, o coral polifônico de conservadores, moderados ou radicais descamba para agressões físicas e a tentativa de se impor pelo grito.

Daí não ser difícil o exercício de enxergar um vaso comunicante entre os episódios de 1789 expostos na peça e o mundo de hoje, sacudido há pouco por primaveras revolucionárias na Europa e África. Esperto, Pommerat evita martelar os paralelismos entre passado e presente - ironicamente, ele faz um personagem tirar selfie com o rei Luís XVI.  Nesta montagem fascinante e aterrorizante, o encenador lança um olhar inquieto sobre o homem e seus anseios, dúvidas, vaidades e contradições. Mais especificamente, sobre a natureza humana e sua eterna disputa pelo poder.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto: Elisabeth Carecchio)

 

Cinderela

Uma releitura contemporânea de um dos personagens mais conhecidos dos contos de fadas. Aqui, o autor e diretor francês Joel Pommerat transforma o enredo criado pelos Irmãos Grimm em uma história de contornos psicanalíticos e atmosfera sombria. A protagonista é uma moça abatida pelo falecimento da mãe, inconformada por não ter compreendido as últimas palavras sussurradas por ela ainda no leito de morte. No entanto, está convencida de que a genitora lhe pediu para que pensasse nela permanentemente, como uma tentativa de eternizá-la no mundo dos vivos. Por conta disso, um alarme soa a cada cinco minutos para relembrá-la da mãe morta. No conto original, a figura materna era rapidamente proscrita.

Na atrevida revisão de Pommerat, uma determinada e enlutada Cinderela precisa lidar com seus sentimentos de tristeza e culpa e aprender a se virar em um ambiente nada fantasioso, bem diferente do universo mágico das narrativas infantis. Em sua aventura, não pode contar com o pai, criatura apática e frágil, tampouco com a patética madrasta e duas meninas desagradáveis. Estamos diante de um doloroso rito de passagem, momento em que ela busca conquistar autonomia, autoconfiança e independência em meio às inseguranças naturais da idade. É uma convenção típica de contos de fadas, mas Pommerat a reveste com ironias, sarcasmos e dose de cinismo. Ao mesmo tempo em que expõe a tragédia da infância, mostra que no domínio adulto os dramas da vida continuam. Eventualmente a cena é cortada pela presença de um narrador, que se comunica em linguagem de sinais e gestos e funciona como elemento de transição entre a realidade e o sonho.

Pommerat domina toda a linguagem teatral, valendo-se de uma cenografia simples e belos efeitos visuais, de tons oníricos, extraindo nuances e espessuras dos diversos personagens. Convincente, o elenco se desdobra em vários papéis. O público é surpreendido pela transfiguração do conto original. Cinderela, aqui chamada de Sandra, não se revolta, por exemplo, em assumir tarefas domésticas e dormir num quarto sem janelas. Nem se abala ao receber o apelido de Cinzeiro e ser visitada por uma fada com sérias dificuldades em promover feitiços. O encenador desmonta qualquer forma de idealismo. A jornada da heroína não é idílica. Até um número de dança, um dueto envolvendo ela e o príncipe, ganha o sentido da exaltação do corpo e não do amor. O espetáculo transpira uma poesia áspera, severa, quase melancólica. Simultaneamente, promove uma incômoda reconfiguração da fábula atenta à realidade atual.

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Cici Olsson)

 

Still Life (Natureza-Morta)

Um dos pilares da dança contemporânea grega, Dimitris Papaioannou desenvolve no palco uma alegoria do absurdo. No espetáculo, de beleza geométrica e imagens conceituais, personagens empreendem luta humana incansável e irracional. O mecanismo de repetição e de imitação, retratada por meio de ações ilógicas e disparatadas, lembra algumas criaturas de Samuel Beckett, perdidas em tarefas insensatas. O ponto de partida da montagem é uma recriação contemporânea do mito de Sísifo, o herói condenado pelos deuses a repetir sempre a mesma missão - empurrar uma pedra até o topo de uma montanha e, lá chegando, observá-la rolar montanha abaixo até o ponto inicial, invalidando todo o esforço realizado. Na montagem, a vida humana é retratada como um amontoado de seres aprisionados em uma reiteração infinita. Tão igual que parece nunca mudar. Como uma natureza morta.

Sob uma bolha que emula a lua, os personagens repetem estas desesperadas ações contínuas. Um homem carrega sofregamente nas costas um muro de pedras em decomposição. Com o objetivo de atravessá-la, ele a perfura em seu centro, enquanto outra pessoa, postada atrás dessa muralha, desliza braços e pernas pela mesma abertura. Forma-se um jogo de equilíbrios e desequilíbrios. Tal operação produz uma figura grotesca e surreal, composta por membros de dois atores. Em sequência posterior, um homem sacode um painel de plástico flexível que está à frente de uma mulher – o procedimento distorce e deforma a imagem feminina. Mais adiante, um grupo se envolve na exaustiva empreitada de arrancar fitas coladas no chão. Por fim, a bolha que parece se desgrudar do teto é açoitada por golpes de pás. Por vezes, um personagem caminha pelos corredores do teatro observando as ações que acontecem no palco.

Tudo isso transcorre em movimentos lentos e contemplativos, embalados em atmosfera sufocante, de grandes efeitos dramáticos e poéticos. Camadas de significados são desembrulhadas e cabe ao público o papel de construir mentalmente uma narrativa. Uma das chaves para compreender o espetáculo passa por uma leitura política. Papaioannou materializa uma visão sombria do capitalismo, em especial, da grave situação a qual a Grécia está inserida. Ou talvez ele queira exibir seres que foram expulsos do paraíso. Quem sabe ainda, uma reflexão desconfortável sobre a paradoxal condição humana. A do homem que, influenciado pela religião ou sistema capitalista de produção, segue sua vida sem um sentido próprio. O diretor transforma o banal em poesia.   

(Edgar Olimpio de Souza)

(Foto Julian Mommert)

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