O Grande Inquisidor

Não poderia deixar de causar polêmica e controvérsia a reaparição de Jesus em plena Sevilha do século XVI, no auge da Santa Inquisição Católica. O andarilho, que todos acreditam ser a reencarnação de Cristo, é aclamado pela multidão por novamente curar e operar milagres. Para o Santo Ofício, no entanto, ele se torna uma ameaça a uma sociedade que, acreditam os sacerdotes enclausurados no poder, não passa de um formigueiro humano incapaz de lidar com o livre-arbítrio e precisa ser tutelado. Claro, o Cristo reencarnado acaba preso e condenado à fogueira, a mando de um velho cardeal da Igreja Católica, responsável pela cremação de dezenas de hereges.

Na encenação minimalista de Roberto Lage, com solo de Celso Frateschi, a opressiva atmosfera religiosa instaurada no palco demarca com precisão a porrada na consciência que emerge desse conto extraído da obra Os Irmãos Karamazov (1880), de Dostoiévski. O célebre escritor russo devia saber que o castelo cristão erguido após a primeira passagem do Messias pela Terra ruiria facilmente caso o mesmo fosse invadido por Ele em uma segunda incursão terrena. No ambiente conturbado daquele século, tipificado por fiéis submissos e obedientes, a presença de uma figura mítica pregando liberdade aos humanos é uma heresia que precisa ser eliminada.

No espaço diminuto onde ocorre a ação, não há necessariamente um confronto, mesmo porque Cristo, simbolizado por um quadro, mantém-se mergulhado em um silêncio perturbador. Ao longo da madrugada, o grande inquisidor não para de indagar as razões do prisioneiro para estorvar a humanidade nesse segundo regresso. Ele argumenta que, por ser uma criatura frágil e lamentável, o homem seria inapto para alcançar a felicidade, salvo se submetesse ao governo de seres superiores e privilegiados, no caso, o clero. Chega a relembrar as tentações no deserto e as recusas de Jesus em operar milagres. O interrogatório é intenso, com o religioso vociferando um discurso autoritário, que reconhece o abismo existente entre a instituição que representa e a essência do cristianismo.

O espectador é recompensado por um texto rico e profundo em idéias sobre os limites da fé, a intolerância religiosa, o exercício cínico do poder, a intransigência em relação ao diferente. Em suma, o público terá à sua frente a história mal contada de uma religião, de como ela forjou o seu ideário e estabeleceu o seu poder discricionário e paternalista. Num olhar mais ampliado, a narrativa escancara a natureza humana e as  

crueldades que o ser humano é capaz de cometer em nome de crenças e dogmas. É curioso como o tema dessa fábula encontra sintonia com os tempos de hoje, no momento em que estouram regimes autoritários e a verdade dos fatos depende do ponto de vista de quem a manipula.

Acionando seu conhecido domínio de recursos técnicos e emocionais, Celso Frateschi empresta força, rigor e autenticidade a este inquisidor impositivo. É impressionante a maneira visceral com que arrebenta o dique de palavras, sentenças e ideologias, num efeito de grande impacto. Ele circula pelo recinto intencionalmente reduzido e de iluminação tênue, em meio a projeções de imagens, baú, mesinha e uma poltrona. Ao fundo, uma parede atulhada de livros e processos administrativos. A cenografia, de Sylvia Moreira, reforça o clima dramático e grave. Neste espetáculo reflexivo e difícil, o embrutecimento de um personagem e a sensibilidade do outro formam contrastes inconciliáveis.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )      

(Foto: Bob Sousa)

 

Avaliação: Ótimo

 

Texto: Fiódor Dostoiévski

Direção: Roberto Lage

Elenco: Celso Frateschi

Estreou: 13/05/2016

Ágora Teatro (Rua Rui Barbosa, 672, Bela Vista. Fone: 3284-0290). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 60. Até 10 de julho. 

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