A Última Dança

Numa fábrica, o operário não está acima das máquinas, mas abaixo delas. É uma espécie de refém. As engenhocas, que se servem dele, são feitas para turbinar o ritmo produtivo e não para auxiliá-lo a enfrentar uma tarefa. O labor deixa de ser uma luta pela sobrevivência para dar lugar ao propósito do lucro. Provocativo e objeto de acaloradas discussões ao longo dos tempos, o tema perpassa o surpreendente espetáculo construído a partir de textos da filósofa e escritora francesa Simone Weil (1909-1943). Durante dois anos, ela trabalhou como operária em uma fábrica com o intuito de examinar o cotidiano nesse ambiente. O registro diário da experiência resultou num instigante estudo sobre a opressão social e sua relação com a forma capitalista de organização do trabalho.

O conhecimento adquirido por essa mulher, que abdicou em 1935 e 1936 de sua confortável vida burguesa para vivenciar a empreitada a que se impôs, ganhou um sentido poético teatral ao ser transposto para o palco. Transformou-se em uma montagem que, sem resvalar no panfletário, superou a armadilha do denuncismo ou do melodrama fácil. Na pele dessa personagem singular, apaixonada por literatura, história e filosofia, Natalia Gonsales move-se pelo território cênico, povoado de verdadeiras máquinas de linha de produção moldadas para manejo apenas das mãos – assinado por Flávio Tolezani, o cenário exala a imagem forte de um ambiente claustrofóbico. Em meio aos seus afazeres, ela faz café, manipula um vaso de planta, escreve num diário.     

Em nenhum momento a encenação procura assumir o primeiro plano. A direção da própria atriz é discreta e eficaz, com respiros aqui e ali. Contorna sem maiores complicações os riscos de monotonia que costumam rondar os espetáculos solos. O texto desliza sempre interessante, as frases não saem do registro sereno e firme, as palavras soam veementes. Os conflitos emergem na sua essência, sem que seja preciso falsificá-los. A envolvente música composta por Daniel Maia, permeada por burburinhos, ruídos e batidas, contribui para pincelar o retrato de um rumoroso recinto fabril. A climática iluminação concebida por Igor Sane desenha a atmosfera fria e impessoal de um estabelecimento industrial.

Com sensibilidade e empenho, Natalia encontra a medida justa na hora de expressar sentimentos como fome, a passividade do funcionário diante da pressão dos superiores, a monotonia, o esgotamento físico advindo da atividade penosa e servil, o medo de lidar com máquinas perigosas, a angústia de constatar que chegar um minuto atrasado significa trabalhar uma hora sem salário. Uma dor de cabeça automaticamente se associa ao barulho diabólico de uma britadeira que chacoalha o trabalhador agarrado a ela. Um acidente na prensa e um dedo da mão é quase mutilado.

Natalia Gonsales chega a se confundir intencionalmente com Simone Weil, buscando uma analogia crível. Ambas, em escalas diferentes, viveram circunstâncias as quais a submissão hierárquica impõe um silêncio resignado – em seu trabalho no teatro, um ator muitas vezes precisa se despir de suas vaidades e aceitar, sem questionamentos, as ordens de um diretor. O drama da operária tem ecos de tragédia grega. Não por acaso, em determinada passagem, a intelectual francesa se espelha na figura mitológica de Antígona, em luta obstinada para enterrar o irmão morto, proibido de ser sepultado por um inquisidor Creonte – na vida real, ela foi fortemente influenciada pelo irmão, considerado um gênio da matemática. Na composição dessa mulher pertinaz, a atriz procura não se entregar ao virtuosismo estéril. Munida de recursos simples, ela desfaz qualquer tipo de efeito grandiloqüente, que concederia um aspecto superficial ao papel.   

Não realista, a montagem trata de temas urgentes e atuais. Em que pesem as mutações ocorridas no interior do sistema fabril, ainda subsistem fatores como a coerção constante para se alcançar uma pesada cadência produtiva, a ameaça subliminar de demissão caso não se cumpram metas cada vez mais utópicas, a fragmentação das atividades, a sensação de impotência e servilismo. Há muito uma fábrica funciona como um sistema absoluto, impermeável à efetiva participação do operário. A personagem chega a refletir que nesses locais a coação não resulta em rebelião, mas em obediência e apatia.

Uma cena simbólica exibe a força da peça, quando é relatado um encontro entre Simone Weil e a filósofa existencialista francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), a quem admirava pela inteligência. Simone Weil defendia uma revolução que daria de comer a todo mundo. Simone de Beauvoir acreditava que o problema não era fazer a felicidade dos homens, mas encontrar um sentido para sua existência. “Vê-se bem que você nunca teve fome”, rebateu a primeira, instantes antes de vestir avental de operária.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Carla Trevizani)

 

Avaliação: Bom

 

A Última Dança

Dramaturgia: César Baptista, a partir de textos de Simone Weil

Atuação e Direção: Natalia Gonsales

Estreou: 13/06/2016

Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323, Pinheiros. Fone: 3801-1843). Segunda, 21h. Ingresso: R$ 30. Até 15 de agosto. 

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