EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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O Corte

A impressão é a de que todo mundo convive com algum tipo de culpa nesta peça do dramaturgo britânico Mark Ravenhill. Indefinida no tempo e no espaço, a trama, encenada por Daniel Lopes, embute um enigma não totalmente esclarecido e insinua um discurso político pelas suas bordas. A ação tem início em um ordinário escritório governamental, onde um homem está determinado a passar por uma cirurgia, o tal corte do título, que, acredita, irá lhe conceder uma espécie de liberdade.

Ao que parece, o procedimento médico suprime o desejo e a memória e pode provocar a morte. Claro, é um simbolismo para ilustrar a natureza tirânica do Estado, com suas normas obscuras, hierarquias inflexíveis e rarefeita civilidade. Quem irá recepcioná-lo, e tentar demovê-lo do propósito, é um funcionário do alto escalão, saturado de seu papel dentro da instituição e propenso a surtos de irritação. Em surpreendente inversão, Paul oferece-lhe alternativas, como o exército, a universidade e mesmo a prisão, possibilidades rejeitadas por John.        

Na cena seguinte, o burocrata encontra-se em sua casa, ao lado da esposa, com quem mantém uma relação cheia de fissuras. A instável Susan, que suspeita da atividade profissional do marido, está insatisfeita sexualmente, não quer mais dormir na mesma cama e reclama do fato de ele chorar sempre que fazem amor. O casal se vê unido apenas no sentimento afetuoso pelo filho Steven, um estudante que flerta com um cenário político mais liberal. Ela ainda trata a empregada imigrante Mina com desdém e desprezo por julgá-la incompetente, reproduzindo na esfera privada o espírito de opressão reinante.

No terceiro e último segmento, decorridos alguns anos, o planeta passou a ser regido por outra ordem. Paul e Steven se confrontam numa exaltada discussão sobre métodos de tortura. Recente opressor, o filho se envolveu em movimentos estudantis que lutaram pela revogação da técnica do corte e o ex-todo poderoso pai agora é um prisioneiro ávido pela execração para aliviar a sua culpa.

Por vezes o texto, uma utopia às avessas, desliza para um exercício vago, carente de matéria dramática. Há também relativa imprecisão no tocante ao dispositivo cirúrgico em vigência, se administrado como castigo a um crime ou se executado arbitrariamente. A cuidadosa direção de Daniel Lopes contorna esses embaraços disponibilizando um espetáculo com pegadas de ironia e paradoxos, ressaltando a tensão do enredo, a apreensão dos diálogos e o desassossego dos personagens.

Hélio Cícero transforma Paul em uma criatura perturbada psicologicamente – lacaio do Estado, ele carrega o fardo de infligir dor aos outros e desumanizá-los. Ao longo da encenação, o ator transita da autoconfiança para a dúvida, da angústia para a sensação de que o personagem foi definitivamente tragado pela nova realidade. Em interpretação crível, Adriana Pires dá substância à gelada e ansiosa Susan, mulher mais alarmada com a mesa de jantar do que com o casamento em decomposição. No corpo do filho impassível, Felipe Ramos inocula intensidade a Steven, um indivíduo que revela inacreditável placidez na hora de censurar o pai. Felipe Hintze empresta um ar chocantemente sincero a John, o cara em processo irreversível de auto-aniquilação. Com pouca participação, mas seguras em cena, Priscila Castelo Branco (Gitta) e Michelle Sampaio (Mina) incorporam figuras de trejeitos robóticos, destituídas de emoção e reação, até em situações de humilhação, caso específico da funcionária do lar.  

Tudo transcorre em um ambiente asséptico, frio e impessoal, na concepção cenográfica de Luiza Curvo. Com sua transversal representação do autoritarismo, a peça inquieta o espectador ao espelhar uma sociedade brutalizada, intolerante às diferenças, que aprecia valorizar expressões como “metas de desempenho”, vociferadas em determinadas passagens. O autor certamente se inspirou nas obras 1984 e Admirável Mundo Novo, ficções que expressaram o pesadelo de sistemas totalitários programados para proporcionar aos seus cidadãos uma felicidade compulsória. Ravenhill tece sutil comentário sobre a mentalidade de colonialismo e de campo de concentração que ainda contamina o ser humano em circunstância de poder. Ele sugere haver mais semelhanças entre governos coercitivos antigos e atuais do que gostaríamos de admitir.  Ou seja, em sua ótica, nada mudou. O homem está sempre inventando e reinventando a roda da opressão. Na trama, um regime acabou destronado e outro galgou o seu lugar, imbuído da promessa de novos ideais, imediatamente descartados. A parábola é crua: os efeitos degradantes de um estado opressivo devastam tanto os oprimidos quanto quem oprime.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto: Leekyunng Kim)  

 

Avaliação: Bom

 

O Corte

Texto: Mark Ravenhill

Direção: Daniel Lopes

Elenco: Adriana Pires, Felipe Hintze, Felipe Ramos, Hélio Cicero, Michelle Sampaio e Priscila Castelo Branco.

Estreou: 19/10/2016

Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis. Fone: 3662-7233). Quarta e quinta, 20h. Ingresso: R$ 50. Até 15 de dezembro. 

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