EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: O Corpo da Mulher Como Campo de Batalha

O escritor e dramaturgo romeno Matéi Visniec afirma que nas guerras interétnicas, como a que eclodiu na região dos Bálcãs entre 1992 a 1995, o sexo da mulher torna-se um campo de batalha por ser considerado emblema da resistência. Ou seja, a violação sistemática da mulher, espécie de guerra-relâmpago, funciona como uma estratégia militar para afrontar e desmoralizar o inimigo étnico. Naquela bárbara luta entre nações que formavam um único país (Iugoslávia), elas eram confinadas em escolas e igrejas – estimativas oficiais apontam que cinquenta mil delas sofreram violência sexual. O raciocínio era tão cruel quanto cristalino: se não é possível comprar armas, então a tática é deflorar a esposa de seu adversário. A agressão carnal, nesse caso, tem o mesmo peso e sentido de profanar um lugar sagrado ou destruir símbolos culturais do oponente.

Escrita em 1997, esta peça incômoda e sombria recebeu inspirada montagem, assinada por Malú Bazán. O texto examina com olhar singular o conflito mais longo e sangrento em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial. O autor desenvolve o discurso, se valendo da psicanálise na autópsia do horror, de como questões étnicas, o nacionalismo exacerbado, mecanismos sociais e valores religiosos deslancharam a barbárie. A trama reúne duas personagens, que ocupam espaço cênico forrado de terra. Uma delas é a grávida Dorra, mergulhada em si mesma e incapaz de responder aos estímulos externos, seu mecanismo de defesa. Ela foi violentada durante o confronto bélico por um homem (na verdade uma gangue) que pode ter sido seu vizinho, um antigo colega de escola ou alguém de seu círculo social. A outra é Kate, médica voluntária americana, mãe de dois filhos, que desembarcou na Bósnia para auxiliar equipes de especialistas a abrir valas comuns. Abatida pelas imagens terríveis que testemunhou, agora ela se dedica ao tratamento de vítimas de estupro. Ambas estão instaladas em um centro hospitalar da OTAN, na Alemanha, no final de 1994.  

O agudo e angustiante espetáculo desdobra reflexões poderosas sobre a bestialidade da guerra e seus efeitos terríveis sobre o indivíduo. O espectador presencia o relacionamento instável e de perspectivas opostas que aproximam e afastam as duas criaturas. Num primeiro momento, a impressão é a de que a terapeuta está tentando curar a paciente, como sabemos pelos relatórios. No entanto, tudo não passa de aparência. A gravidez involuntária, por exemplo, é um tema que as coloca em territórios antagônicos. Dorra deseja interromper a gestação e não entende porque a outra quer assumir a responsabilidade pelo bebê, já que ela tem a sua própria família nos Estados Unidos. Kate, que desenterrou tantos cadáveres, quer voltar para casa com uma criança por esta ser uma sobrevivente do conflito armado. Em suma, se a jovem violada quer esquecer e não sente a mínima vontade de voltar à normalidade, a americana busca compreender os eventos e se agarrar à vida. Aos poucos, no entanto, os papéis se invertem. À parte a transfiguração das atitudes, o fato é que elas se encontram emocionalmente arruinadas.

A direção é cirúrgica, valoriza a dramaturgia, destaca o trânsito dos sentimentos e dá ênfase às interpretações. As marcações são desenhadas para nunca afrouxarem a tensão permanente, os variados graus de dor e a loucura dessas mulheres devastadas pela selvageria. A encenação nunca cede ao exibicionismo estéril. É esculpida com sobriedade e atenção para evitar o esgarçamento da dramaticidade. Nota-se uma linha evolutiva para as personagens e atrizes.

As protagonistas exibem segurança e domínio. Com eficácia e competência, elas entregam diálogos e monólogos intensos sobre a tirania dos homens, a importância da memória, o instinto de sobrevivência e a capacidade de superação. Camila Turim encarna com argúcia e inteligência uma deprimida Dorra, que começa em silêncio eloquente e eventualmente explode – a atriz consegue transmitir os sentimentos de opressão e repelência de uma mulher involuntariamente grávida, que sente crescer em suas entranhas um ser que não deseja, destruindo-a. Em um momento comovente, ela “conversa” com a sua barriga, o seu filho e o seu agressor, sem saber se ele é sérvio, muçulmano ou croata. Também com desempenho forte e absorvente, que se equilibra entre o cerebral e o emotivo, Patrícia Pichamone interpreta Kate, encarregada de monitorar a saúde mental de Dorra, mas que ironicamente se vê desassistida em seu estado de transtorno pós-traumático – a terapeuta sente o fardo de carregar nos ombros a responsabilidade de trabalhar em nome da civilização ocidental, da justiça, da memória e do futuro. As duas performances se completam.

Neste drama realista, um alívio cômico se faz necessário para romper com a frieza dos acontecimentos. Visniec reserva uma sequência bem humorada que brinca com os estereótipos étnicos na Europa, até na América, quando Dorra e Kate identificam grupos e enumeram suas virtudes e vícios.  À medida que ficam mais bêbadas, a opinião de ambas sobre diferentes etnias perde a sutileza. Os gregos, por exemplo, são malucos e bonitos, mas vendedores sem escrúpulos. Os romenos parecem até franceses quando falam, porém são fatalistas demais. Os húngaros, dominadores e rebeldes, são aproveitadores e megalomaníacos Cada uma à sua maneira, Kate e Dorra buscam uma redenção mútua e uma reconstrução da identidade em meio ao caos. Por meio de um conjunto de cenas e falas, suas biografias se entrecruzam e o desfecho deixa um naco de esperança. O texto perturba ao desvelar que o ultraje de uma mulher equivale ao abuso de uma comunidade ou nação. O corpo estuprado vira alegoria de um mundo que foi superado pelo processo civilizatório.

 (Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Cassandra Mello)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Corpo da Mulher Como Campo de Batalha

Texto: Matei Visniec

Direção: Malú Bazán

Elenco: Camila Turim e Patrícia Pichamone

Estreou: 12/06/2017

SP Escola de Teatro (Praça Roosevelt, 210, Centro. Fone: 3775-8600). Sábado, 21h; domingo, 19h; segunda, 20h. Ingressos: R$ 40. Até 30 de outubro.

 

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