Teatro: A Guerra Não Tem Rosto de Mulher

Se ao longo da história as narrativas oficiais das guerras costumam ser produzidas exclusivamente pelos homens, aqui são as mulheres que dão sentido e perspectiva aos relatos de lutas armadas que assolam a humanidade. A escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévich, Nobel de Literatura de 2015, teceu um trabalho de fôlego ao entrevistar centenas de mulheres soviéticas que combateram pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial – quase um milhão, segundo dados conhecidos. O pungente trabalho resultou no premiado livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, agora transposto para o palco em montagem imperdível dirigida por Marcello Bosschar. Das duzentas histórias que recheiam a obra, a adaptação se utiliza de cerca de quarenta. Diferentemente da matriz literária, a versão teatral optou pela atemporalidade, descartando identificação de tempo e lugar. No lugar da resenha das batalhas memoráveis e dos feitos monumentais, que normalmente caracterizam a visão masculina, sobressai o olhar feminino de quem enxerga tais conflitos como um campo do sofrimento humano. A peça capta desde nauseantes situações-limites a pormenores que chegam a compor um retrato épico do engajamento feminino.  

Com ênfase na narração, diálogos rarefeitos e linha cronológica descontínua, o espetáculo se sustenta desse poderoso e arrebatador conteúdo dramático para inserir o público no pulso da guerra. A sensível encenação concede relevo às memórias fraturadas de jovens que amadurecem à força em meio à bestialidade e ao som dos tiros e explosões. Mulheres que, ao se alistarem voluntariamente ao exército, às vezes até forjando documentos, adiaram projetos de vida, como casamento e universidade, e enfrentam circunstâncias desconhecidas no território de conflagração, sempre com a disposição de lutar sem perder a feminilidade.  

Elas não só atuaram como enfermeiras e cozinheiras como tiveram que assumir a função de franco atiradoras, pilotar tanques de guerra, desarmar bombas, alentar feridos à beira da morte. São depoimentos, a partir das vozes das três intérpretes/narradoras, que exalam a aflição de terem de aparar os seus cabelos, envergarem uniformes militares, menstruarem em plena ação e deixarem os filhos com quem ficou em casa. Lembranças que carregam a silhueta da morte, o sentimento de masculinização, a repugnância de matar pela primeira vez.

Sem cenografia e objetos cênicos, a direção prioriza o trabalho de interpretação, criando uma dinâmica paleta de movimentos e coreografias. Cada sequência exibe sólida unidade. Vestindo figurinos idênticos e estilizados, assinados por Kika Lopes, as atrizes transitam pelos mais diversos sentimentos. Ora invocam episódios de perdas e desesperança, ora descortinam instantes de puro afeto e a superação. É um espetáculo inteligente, insuflado de energia. Carolyna Aguiar, Luisa Thiré e Priscila Rozembaum destilam desempenho vital e apaixonado. Elas se se equilibram entre a exaltação exterior e as pulsões íntimas, o político e o psicológico, o coletivo e o individual. Bosschar não deixou a encenação despencar no psicologismo autopiedoso e as diversas cenas curtas não impedem a instauração de um robusto tecido dramático. O público é envolvido de forma natural e facilmente se vê no cotidiano da guerra.  

Há passagens inquietantes, que embaçam os papéis de mulher e soldado. Como aquela em que uma mãe combatente, imersa em um brejo ao lado de outros companheiros, todos cercados, não tem outra opção a não ser cometer um ato extremo para evitar que sejam detectados pelas forças adversárias. Em outro momento, uma soldada recolhe feridos e percebe, aturdida, que entre eles se encontra um inimigo. Ou o quadro em que uma delas observa o sangue da menstruação mesclando-se ao sangue derramado no campo. Em contrapartida, um inenarrável alarido se forma após elas deixarem de usar cuecas e regressarem ao lar. 

O texto entrelaça passado e presente e é fértil em clarear as angústias e dúvidas, os abusos físicos e psicológicos de mulheres que estiveram no fogo cruzado. A autora destaca o desejo dessas jovens em empunhar armas e participar daquilo que julgavam uma obrigação cívica. Trata-se de uma peça que desnuda a linha tênue entre vencedores e derrotados. Todos perdem, é o duro aprendizado. Ao voltarem, combalidas e em ruína emocional, elas ainda terão de enfrentar outro desafio, tão terrível quanto a que vivenciaram no front: a de reconquistarem os filhos deixados com outras pessoas e lidarem com o desprezo cultivado por uma sociedade machista e impiedosa.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Guga Melgar)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Guerra Não Tem Rosto de Mulher

Texto: Svetlana Aleksiévich.

Direção: Marcello Bosschar

Elenco: Carolyna Aguiar, Luisa Thiré e Priscila Rozembaum.

Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis. Fone: 3662-7233). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 60. Até 17 de dezembro.

Estreou:  21/10/2017 (em São Paulo)

Comente este artigo!