Teatro: Pequenas Certezas

Nesta peça, nunca vemos o personagem central, mas seu nome jamais deixa de ser citado pelos demais. O tal fulano é Mário, para cuja ausência ninguém consegue encontrar uma razão pertinente. Irmão mais novo de João, ele decidiu sair de casa depois de ambos terem discutido rispidamente, quando se ouve uma forte batida de porta. A trama é detonada a partir desse sumiço sem rastros, com o envolvimento de cinco personagens, todos implicados com ele em graus variados, que se entregam ao exercício de perscrutar uma pessoa que, no fundo, ninguém conhecia por completo. Mário é o eixo, mas em momento algum o espectador acompanha sua trajetória através de seus olhos. Só o apreendemos pela fala e ponto de vista dos outros, pelo juízo daqueles que o cercavam. 

Dirigida por Fernanda D´Umbra, a montagem da peça da dramaturga mexicana Bárbara Colio transcorre em um porão teatral. É nessa atmosfera que um drama familiar, ou melhor, dois núcleos dramáticos em alvoroço se cruzam, num enredo que parte da cidade do México, onde residem mãe e filha, e desemboca no município de Tijuana, terra natal do sujeito desaparecido. Existe um suspense em torno do acontecimento, às vezes assumindo contornos policiais. Pelas frestas, no entanto, se esgueira um tipo de humor negro, traduzido por diálogos de alguma comicidade em plena situação trágica. A história da ansiosa fotógrafa Natália, de sua sensitiva mãe especialista em fazer bolos de chocolate, da extrovertida amiga Olga e dos irmãos desesperados João e Sofia é gradualmente desfiada, com sutis referências à natureza simbólica da fotografia - a ideia de que uma foto tanto pode ser a evocação da lembrança de alguém quanto uma maneira de capturarmos sentimentos profundos emanados da imagem. A autora ainda trabalha com um tema recorrente em seu país: a morte, celebrada com o mesmo peso e culto que se atribui à vida.

Natália viajou com o intuito de revelar ao companheiro, com quem teve um rápido romance, que está grávida dele. João e Sofia nem sabiam da existência de uma namorada na vida de Mário. Por sua vez, a Mãe mantém uma relação epidérmica com a morte e sua liturgia. As coisas se complicam porque uma herança teria sido deixada para a namorada sem que ela e os irmãos dele soubessem a respeito. Aspectos surpreendentes do sumido, que permaneciam velados, veem à tona. Até a morte deixa de ser algo assustador, afinal, ela está produzindo interessante conexão entre eles.

O que se tem são duas famílias sem contato prévio e separadas geograficamente unidas por conta de uma figura ausente. Quatro personagens precisam elucidar o paradeiro de Mário e buscar uma solução cordial para o pecúlio a ser dividido. A chegada posterior da efusiva Olga faz os choques interpessoais subirem um degrau. Com mais matizes do que suscita em um primeiro olhar, o texto transita por tópicos como identidade, abandono, legados, obsessões, impasses, pequenas certezas diárias.

A diretora enfrenta com empenho a complicada incumbência de dar sentido à organização dos ambientes – casa e seus diversos cômodos, rua, consultório médico, funerária. A encenação flui com ritmo vivo e agilidade e as marcações preenchem recantos, vazios, vigas de concreto, mezanino e escadas, requerendo permanentes mudanças na disposição dos poucos elementos cênicos. Por vezes a direção se deixa seduzir pela abrangente arquitetura do espaço subterrâneo e dispersa demais as cenas, num efeito contrário a um minimalismo que ressoaria mais adequado e aproximaria o público do drama. A cenografia de Luiza Gottschalk e Marcelo Maffei, e a iluminação de Aline Santini, são funcionais e inteligentes.

O elencoexibe sintonia ao dar vida a estes indivíduos em estado vulnerável, trespassados por perdas e tristezas. A Mãe, em performance persuasiva de Chris Couto, impõe-se como a figura mais rica em nuances, boa parte por conta de seu peculiar relacionamento com a morte e sua vocação de procurar sepulcros para gente insepulta. Mariana Leme injeta suavidade na composição de Natália, jovem confusa e insegura, sempre sob a sombra de sua mãe e que almeja uma fotografia de seu parceiro para ter a certeza de que ele não era um fantasma. À vontade no papel, Maria Fanchin interpreta Olga, jovem que procura ocupar seu vazio existencial por meio da absorção de experiências alheias. Ivo Muller transmite autenticidade ao incorporar um João às voltas com inseguranças e medos. Em desempenho expressivo, Rita Batata faz da geniosa Sofia uma personagem que tenta camuflar sua instabilidade exibindo uma inexistente determinação.

Nessa adaptação que tangencia a realidade social do México e pisca para o realismo fantástico – a Mãe, por exemplo, é capaz de sentir presenças -, o desfecho é surpreendente. A sensação, porém, é a de que a escritora urdiu uma saída um tanto inconsistente para finalizar a peça. O expediente não chega a desidratar uma obra que ironiza, no título, o fato de que ninguém pode ter convicção de nada na vida. Exceto a certeza da morte.

Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Edson Kumasaka)

 

Avaliação: Bom

 

Pequenas Certezas

Texto: Bárbara Colio

Direção: Fernanda D´Umbra

Elenco: Chris Couto, Ivo Müller, Maria Fanchin, Mariana Leme e Rita Batata

Estreou: 01/12/2017

Centro Cultural São Paulo – Espaço Cênico Ademar Guerra (Rua Vergueiro, 1000, Liberdade. Fone: 3397-4002). Quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Ingresso: R$ 20. Até 28 de janeiro de 2018.

 

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