MITsp 2019: Politizado e provocante

A sexta edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que aconteceu no mês de março na capital paulista, abrigou atrações internacionais de qualidade. Um dos badalados nomes do teatro europeu, o suíço Milo Rau desembarcou com três produções inteligentes e desafiadoras. A Repetição. História (s) do Teatro (1), que abriu a maratona teatral, provocou choque. O diretor revive um homicídio ocorrido em 2012 na cidade belga de Liége, à época assolada pela desindustrialização e desemprego em massa, para articular exame minucioso da banalidade do mal. Vítima de homofobia, Ishane Jarfi foi espancado e morto por um grupo de jovens, após sair de um bar LGTB. Seu corpo acabou descoberto em um campo apenas duas semanas depois, nu e mutilado.

Após um intérprete encenar trecho de Hamlet, que alude ao fantasma do rei assassinado, uma audição coloca atores amadores contando um pouco de suas biografias. Gradualmente eles vão se misturando aos seus personagens. Um deles revela que sua vida lembra à de um dos assassinos, a quem foi visitar na prisão: situação familiar igual, a mesma atividade profissional, uma angústia existencial semelhante. 

A montagem não faz só o desdobramento da tragédia em episódios. Extrapola o limite teatral para urdir uma aguçada reflexão sobre a natureza da arte teatral, a função dos atores, as fronteiras entre a ficção e a realidade. Em depoimentos, Rau revelou que o seu objetivo não é descrever o real, mas tornar a representação em si concreta. Projeções de vídeos pré-gravados adicionam camadas de leitura. Nem sempre o que se desenrola no formato cinematográfico e o que ocorre ao vivo estão sincronizados. Pequenas diferenças de tempo e discrepâncias de locais da ação sucedem de forma intencional. No angustiante capítulo cinco, Anatomia de um Crime, um carro adentra o espaço cênico. Em seu interior encontram-se o rapaz gay e os homens bêbados e desempregados que o espancaram e assassinaram. A câmera nunca desgruda de seu semblante, transformando o espectador em testemunha do horror.

Não se fica indiferente. O encenador investiga como os atos mais banais podem dizer muito sobre nossa humanidade. No desfecho, aquele que personificou Jarfi escala uma cadeira e enrola uma corda em seu pescoço. Se ninguém da plateia interferir, avisa, ele inevitavelmente morrerá enforcado. Um tapa nos espíritos passivos e inertes.

Cinco Peças Fáceis.Ousado e original, o espetáculo reuniu sete atores de 11 a 15 anos e um adulto para ressignificar a trajetória do pedófilo e serial killer Marc Dutroux. Na década de 1990, na Bélgica, ele estuprou e assassinou uma série de meninas, um evento que deixou traumas e gera reflexos ainda hoje.

O diretor não desembrulha um trabalho fácil. Com viés político, estabelece uma singular conexão entre o legado da colonização belga na África e os crimes abjetos perpetrados pelo psicopata – os primeiros minutos, por sinal, recapitulam a cerimônia da Independência da República Democrática do Congo e o assassinato do guerrilheiro congolês Patrice Lumumba. Na encenação, o elenco infantil desempenha os papéis do pai enfermo de Ducroux, o agente policial que investiga os terríveis acontecimentos, uma das garotinhas e os pais de outra. Elas são filmadas pelo único intérprete maduro no proscênio, na posição de diretor. Curiosamente, as cenas se iniciam com a projeção de um curta-metragem protagonizado por adultos, enquanto no tablado as crianças emendam e passam a agir em simultaneidade ao que está sendo apresentado no telão.

Há momentos angustiantes, caso da atriz mirim quase despida que recita a carta de uma das sequestradas, na qual relata detalhes de seu cativeiro. Seu rosto sobressai na tela grande. Um garoto encarna o genitor de uma das vítimas, abalado pela notícia do estupro e morte de sua filha. Outras passagens produzem da mesma maneira incômodo e mal-estar. O cenário é composto por quatro conjuntos sobre rodas, que delineiam a sala do velho Ducroux, uma delegacia de polícia, o porão onde o maníaco trancafiava as raptadas e a casa da família de uma das garotas desaparecidas. 

Sem fresta para sentimentalismo barato e pieguice, a obra não escancara apenas a infâmia. Em suas entrelinhas, deixa entrever temas imperiosos, relacionados à perda da colônia do Congo e o fechamento das minas de carvão na Bélgica, motor de previsíveis sequelas sociais. Simultaneamente, a peça evidencia o exercício da manipulação e o abuso de autoridade. Tanto dentro do teatro como fora dele também.  

Compaixão. A História da Metralhadora. São dois monólogos, com as faces das intérpretes projetadas em um telão. O palco está atulhado de lixo, destroços de um possível lar destruído em uma guerra civil.  Consolate Sipérius, uma jovem que escapou do massacre no Burundi, foi adotada por pais belgas e agora vive em uma cidadezinha na Bélgica, relata a sua dramática experiência. Sua emoção é contida, os olhos transmitem expressividade. Em sua vez, Ursina Lardi começa exibindo a imagem de uma criança síria morta em uma praia turca. Ela dá vida a uma professora que foi parar em uma organização de ajuda na África Central e viu a selvageria de perto – seu personagem é uma fusão de experiências alheias e do resultado das entrevistas e pesquisas conduzidas por Milo Rau e sua equipe.

Por meio dessas vozes duplas, a da expatriada e a da testemunha de genocídios, o diretor aborda a crise de refugiados na Europa, a consciência e o sentimento de culpa dos brancos europeus e o cinismo de nações que negociam armas para o continente africano com o intuito de prolongar as guerras civis e facilitar o acesso aos abundantes recursos naturais de territórios em conflagração. Sua metralhadora alveja ainda o ambíguo papel humanitário das ONGs em áreas de hostilidades no mundo. Em sua visão, são organizações coordenadas Lpor indivíduos privilegiados, tão exploradores e radicais quanto aqueles contra os quais lutam.

Rau discute até que ponto tais entidades não-governamentais são cúmplices nessas atrocidades que combatem. A professora, por exemplo, é encarada como uma espécie de turista, que tem necessidade de colecionar narrativas para contar e se sentir especial. Uma expressiva diferença se observa entre ambos os relatos servidos ao público. Uma foi pessoalmente afetada pelo horror do extermínio. A outra tinha a opção de abandonar a província bélica quando bem quisesse. O encenador não esconde o desejo de perscrutar a moralidade questionável e a compaixão conveniente e compreender como ambas se imiscuem na construção da identidade europeia. 

Mágica de Verdade. Outra criação instigante na grade da MITsp levou a assinatura do grupo inglês Forcedo Entertainment. Conhecida por sua inquietação, a trupe produz uma sátira corrosiva aos game shows e à inútil tentativa de buscar significado e sentido em programas com lógica e regras bizarras. Três criaturas estão enredadas no jogo. Um é o apresentador, o outro, de olhos vendados, é quem deve adivinhar a palavra que foi pensada por um terceiro competidor, vestido de frango.  

A cada rodada desse divertido e torturante ritual de erros, eles trocam de posto e de roupa. O trio repete sempre os mesmos vocábulos e jamais acerta. Nem aprende com a experiência. Ninguém consegue vencer, embora mantenham um fio de esperança. De repente "dinheiro" seja finalmente a resposta certa. Estão feitos reféns de uma diversão macabra.

Durante a batalha se revelam perplexos, frustrados, irritados, desesperados, exaustos. Todas as sequências têm um ritmo e ênfase próprios. Podem ser lentas ou extensas, hilárias ou sinistras, entediantes ou lúdicas. A contagem regressiva de um relógio, que parece uma bomba prestes a detonar, é acionada fortuitamente.  Aplausos enlatados e explosão de risadas vindos de um público invisível invadem o auditório. A crescente ansiedade chega a contaminar o público e algum espectador não resiste em interagir. Talvez para relaxar, porque as coisas não transcorrem como imaginam, os contendores protagonizam por vezes uma dança absurda. 

O que o diretor Tim Etchells dramatiza é a incapacidade do indivíduo em modificar sistemas opressivos. No lugar de transformar, de viver de forma diferente, o ser humano está fadado à ilusão de mudança. Ele se esforça para reinventar novas dinâmicas de vida e de poder, mas não logra êxito. Nessa peleja, todo mundo é um perdedor.

O Alicerce das Vertigens.  O diretor teatral congolês Dieudonné Niangouna nasceu no Congo em 1976, período em que explodiu a primeira guerra civil. Chegou a ser capturado por grupos rivais e quase foi executado. Urgente, aguda e figadal, a produção retrata uma nação à deriva, devastada pela sucessão de conflitos armados.  

Não se trata de uma mise-en-scèene de digestão suave. É uma performance vulcânica, verborrágica, violenta. Atores gritam, sons de rumba, guitarra e sirene impregnam o ar, projeções de vídeo difundem animais em processo de esfolamento. Arames farpados e sacos de areia estão à vista. A atmosfera embaraçosa espelha a montanha russa emocional dos personagens, que vivem na capital Brazzaville, fustigada pela delinquência, prostituição e drogas. Na trama, os irmãos Fido e Roger, um legítimo e um renegado, são apaixonados pela mesma mulher, que acabou sendo encontrada morta com sua filha.

Sem concessões, escorado em longos e tensos solilóquios, o enredo não se contenta em desfiar o percurso dos irmãos inimigos, confrontados com desaparecimentos familiares e o passado atroz de sua terra natal. Combina um jorro de sentimentos difusos a um inclemente discurso político sobre o Congo, da colonização aos dias atuais. Ocasionalmente lembra uma aula de história, ao entrelaçar as vivências de Fido e Roger e a espiral de violência que acomete um país rico em recursos naturais, mas com a maioria esmagadora da população vivendo em extrema pobreza.

 

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