Teatro: Eu/Telma

O espetáculo transpira um emocionante tributo ao pai da atriz, falecido em 2013. Apinhado de influências e impressões, o trabalho de Nicole Marangoni tem como ponto de início uma experiência particular, que passa a ganhar cores e feições universais conforme o enredo se desenvolve. Como a morte de um ente querido ecoa na mente e no coração de uma pessoa, que terá de lidar com o sofrimento do luto? O solo ignora a tentação de querer sumariar os eventos que culminaram na doença fatal. Há uma busca, não realista, mas subjetiva. O material biográfico da intérprete se entrelaça ao drama ficcional de uma cuidadora de idosos, que cedo perdeu a mãe. Ou seja, as reminiscências de uma menina que viu o progenitor falecer se embaralham às lembranças de uma outra garota destituída da figura materna. Embora a dor não seja transmissível, todo mundo consegue senti-la e a montagem se vale dessa percepção.  A consequência é uma obra lírica, orgânica, comovente, sobre o amor que a personagem sente por seu pai e os processos de despedida a que todos algum dia irão vivenciar.

Numa aposta ousada, e bem-sucedida, a representação prescindiu da presença do diretor e foi esculpida a partir do olhar externo de provocadores cênicos convidados. Eles cumpriram o papel de interferir tanto na marcha de criação quanto no resultado artístico alcançado. Em cena, Nicole captura com relativo êxito a marca do tempo. Aqui e ali é possível vislumbrar referências a filmes que, direta ou indiretamente, vasculham as relações familiares. Há alguma coisa do longa Amor (2012), de Michael Haneke, em sua leitura introspectiva e nada grandiloquente da perda. Sonata de Outono (1978), de Ingmar Bergman, forneceu a ideia das estações e dos ciclos da vida, detonadores de marcas profundas. Do humanista Ondas do Destino (1996), de Lars Von Trier, emerge a reflexão de como o ser humano consegue se relacionar com seus limites.  

A encenação em nenhum momento deturpa o sentido da meditação sobre o destino inexorável da existência. A protagonista evita as armadilhas de abordar o assunto como se tivesse deitada num divã de psicanalista. Com espontaneidade e comunicação, ela cria uma fala natural, nunca enfadonha ou ingênua. Atinge o poético por meio do trivial. Uma performance temperada pela vitalidade e a composição serena.

Fios invisíveis costuram os universos biográfico e ficcional. Cenas sugestivas evocam sensibilidades diferentes. Logo no início se fala da sororoca, o som dos últimos suspiros de quem está se despedindo d. Há uma sequência na qual um palhaço sem graça pilota um jogo infantil, com desfecho inusitado. Em outra passagem, o despertar sexual tem como ambiente o mar. Em momento agudo, a filha revela que sente falta da mãe, de alguém para dizer se a roupa que está vestindo é boa ou não. A mise-en-scène não carrega nas tintas, prefere o meio-tom das emoções veladas. Tudo se entrosa e cheira paixão. A pureza, a simplicidade e o rigor inscrevem o público num clima tocante.

Lastreada nesse princípio minimalista, a peça propõe ressignificar o conceito da morte que, mesmo sendo inevitável, poucos ainda sabem encará-la bem. É uma experiência triste e dolorida, sabe-se, mas pode ser também uma janela para a transcendência, a possibilidade de aproveitar essa circunstância de maneira mais generosa. Em ambos os planos narrativos as personagens se encontram num instante de fragilidade, vulneráveis, porém nunca deixam de trocar benquerença e carinho com quem está partindo. Não é incomum alguns espectadores chorarem ao final da sessão.  

Recursos despojados abolem o supérfluo e desempenham função essencial na hora de embalar as tramas. Um gramado sintético amarelo simboliza o jardim de flores. A cuidadosa iluminação de Yuri Cumer acompanha as modulações emocionais em circulação pelo palco – a luz demarca ainda a transição entre as esferas do eu e de Telma. A acanhada sala produz uma intimidade desejada. A atmosfera neste espaço é plácida e imperturbável. A força do relato está na segurança com que as histórias, os encontros e as conversas são combinados. Diferentemente de um produto sentimental, o que aflora é uma espécie de poética do afeto.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Rafael Latorre)

 

Avaliação: Bom

 

Eu/Telma

Texto e Atuação: Nicole Marangoni

Estreou: 20/07/2019

Aliança Francesa - Sala Atelier. (Rua General Jardim, 182, Vila Buarque. Fone: 3572-2379). Segunda, 21h. Ingresso: R$ 30. Em cartaz até dia 29 de setembro.

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