EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Fóssil

A ação transcorre em uma sala de poderosa distribuidora de gás. O executivo Luiz Henrique (Nelson Baskerville) recebe a visita da cineasta Anna (Natalia Gonsales), de longínqua ascendência curda, atrás de patrocínio para realizar um filme sobre a Revolução de Rojava, no norte da Síria, e uma milícia regional de mulheres armadas. Talvez não seja o melhor momento para o encontro, porque o telefone não para de tocar. Houve algum acidente grave envolvendo a empresa, que precisa ser rapidamente solucionado. A reunião chega a ser interrompida por um telefonema do governador.

O tema investigado é palpitante e tem como cenário o Curdistão, encravado no distante Oriente Médio. Durante três anos a atriz Natália Gonsales empreendeu uma rigorosa pesquisa sobre o povo curdo, que ocupa terras montanhosas fragmentadas pelos territórios de Iraque, Síria, Turquia, Irã, Azerbaijão e Armênia. Com trinta milhões de habitantes, língua e cultura exclusivas, os curdos constituem a maior comunidade étnica do mundo sem um país próprio.

Foi no enclave sírio, em 2012, que brotou uma tropa feminina dentro do exército curdo, polo de luta em diferentes guerras e conflitos disseminados naquela geografia. Também ali está em curso um programa revolucionário com forte protagonismo das mulheres. Um modelo de democracia radical participativa, horizontal e descentralizada, pontuada pela igualdade de gêneros e princípios de sustentabilidade.  

Todo esse farto material esquadrinhado desembocou numa montagem de evidente atualidade, dirigida por Sandra Corveloni. Para falar desse singular processo histórico, a dramaturga Marina Corazza se vale do mote dessa diretora de cinema, interessada em rodar um documentário acerca dessas personagens que, em prol de uma causa, sacrificam suas vidas no enfrentamento contra inimigos declarados. De olho na pertinência do assunto, a autora tenta estabelecer uma conexão entre aquelas ativas guerrilheiras e as militantes brasileiras que, durante o regime militar no País, empunharam armas e optaram pela clandestinidade para enfrentar a ditadura iniciada em 1964.

O espetáculo evolui por meio da competente combinação entre as informações desembrulhadas daquele contexto, o estresse que progressivamente cresce entre a jovem e o homem maduro, com velada tensão sexual entre eles, e a expectativa da assinatura de contrato para o aporte de recursos para a execução da obra. Nas entrelinhas, o flagrante contraste entre quem acredita em mudanças e quem preferiu a zona de conforto.

Luiz Henrique, que no passado manteve uma relação dúbia com a mãe de Anna, se mostra refratário às ideias revolucionárias, mas cinicamente admite que os levantes populares têm o condão de fomentar oportunidades de negócios. Anna expressa seu ponto de vista enquanto narra o roteiro de seu longa – a trama conta a história de uma professora curda de literatura que foi sequestrada por terroristas do Estado Islâmico para ser vendida e escravizada. Ela procura mostrar que as insubmissas curdas combatem grupos extremistas, lutam por um projeto de nação independente, sem a necessidade de fixação de fronteiras, e desejam o fim do ideal da cultura masculina predatória.

O drama se sustenta pela crueza dos relatos e pela força dos diálogos. Algumas cenas destilam emotividade. Uma menina conta para a sua avó o sonho que teve com a figura do Anjo Pavão – para a minoria religiosa yazidi, ele é considerado o maior dos sete anjos que governam o universo, após sua criação por Deus. Em outra passagem, uma conversa imaginária é entabulada por Anna com sua mãe, a quem nunca conheceu.  

Sandra Corveloni opera uma encenação enxuta, instaurando marcações espontâneas que auxiliam na fluidez do trabalho, e contorna com habilidade algumas sequências de certo didatismo. Sua principal missão, cumprida a contento, foi a de assegurar veracidade ao espírito poético do que se vê no palco.  Ela promove ainda uma bem-sucedida interação entre as linguagens teatral e cinematográfica – o videografismo e o videomapping, de André Grynwask e Pri Argoud, e as imagens de drone feitas por Gabriel Chaim, que captam a destruição da cidade de Kobani, prendem a atenção do público.

Os dois intérpretes revelam sintonia e afinidade. Natalia Gonsales se entrega com garra e autenticidade na concepção da documentarista, num elaborado mergulho introspectivo.  Na pele do gestor, Nelson Baskerville implementa uma composição inteligente, sem caricatura e distorção, movendo-se com desembaraço. A envolvente trilha sonora original de Marcelo Pellegrini, os figurinos adequados de Leopoldo Pacheco, a sugestiva cenografia de Carol Buck e a luz sensível de Aline Santini dão preciosa contribuição à mis-en-scène.  

Sóbria e solene, a produção não esconde a intenção de dar visibilidade a uma realidade de viés heroico e torná-la radiante. A dramaturgia galgaria mais degraus se o paralelo com o momento político brasileiro e o debate sobre o papel das empresas no financiamento das artes emanasse novos ângulos de análise que verticalizassem ambas as questões. Nada disso desbasta uma peça que faz um convite para o espectador pensar em pontos relevantes como a globalização, o imperialismo, a intolerância, a exclusão. Se a história é construída pelos opressores, da mesma forma pode ser desconstruída pelos oprimidos.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Bom

 

Fóssil

Texto: Marina Corazza

Direção: Sandra Corveloni

Elenco: Natalia Gonsales e Nelson Baskerville

Estreou: 09/01/2020

Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Água Branca. Fone: 3871-7700). Quinta a sábado, 21h30; domingo, 18h30. Ingresso: R$ 30. Em cartaz até o dia 02 de fevereiro.                        

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