Teatro: Foxfinder - A Caça

O ano foi catastrófico para o fazendeiro Samuel e sua esposa Jude no nicho rural inglês com ar checoviano onde moram. Provavelmente eles não vão conseguir cumprir a meta anual de produção agrícola que lhes foi designada pelo governo atual. Raposas podem estar na raiz do fracasso na colheita, assim como são presumivelmente responsáveis por outros males da humanidade, segundo o regime. Não bastasse a tragédia em curso no campo, ambos ainda enfrentam o luto da perda à primeira vista acidental de uma criança.

Um temido foxfinder se encontra a caminho da propriedade. William é o oficial do Estado, treinado desde a infância por um sombrio instituto para rastrear raposas, identificar terrenos infectados por elas e apanhar os cúmplices desses canídeos - por sinal, Jude recebeu de uma moradora local um panfleto subversivo que desmistifica a farsa tramada por quem detém o poder. Se os bichos forem descobertos, a fazenda será fechada e o casal conduzido para trabalhar em fábricas onde a expectativa de vida não supera três anos.

Na fábula distópica da dramaturga inglesa Dawn King, que recebeu inspirada montagem assinada por Walyson Mota, estes seres são bestas míticas com poderes sobrenaturais para corromper as pessoas e dominar suas consciências. Não se engana quem pensou na peça As Bruxas de Salém, de Arthur Miller. À medida que a investigação de William avança, segredos e fatos incômodos dos anfitriões começam a brotar. Tal é a histeria que até mesmo a vida sexual de Samuel e Jude está em análise, o que coloca em risco o relacionamento deles. 

A direção articula com desembaraço a alegoria fantasiosa do texto com o realismo visceral e a tensão febril dos eventos. Sob iluminação de Matheus Brant, a ação acontece predominantemente sobre um pequeno palco (cenário de Geandre Tomazoni e Gustavo Godoy), que induz a uma atmosfera de claustrofobia - apenas algumas cenas transbordam para fora desse espaço restrito que se confunde com o território de um pesadelo. A angústia, a ansiedade e apreensão dos personagens fluem naturalmente para a plateia.

O elenco entrega uma experiência teatral instigante. Bons embates se sucedem. A disparidade entre os camponeses incultos e o comportamento formal e normatizado do inquisidor é bem caracterizado pelos três respectivos intérpretes. Os figurinos de Marichilene Artisevskis realçam o contraste. Valendo-se de expressão monástica, Eduardo Mosri infunde vida ao obsessivo rastreador William, uma figura que pela primeira vez se depara com a noção de dúvida. O ator realça a ingenuidade, a insegurança e autoridade dele, que por trás da fachada fria parece esconder a frustração de um jovem submetido a repressões.  

Ernani Sanchez é convincente na pele de Samuel, que se transformou em um homem quebrado após a morte do filho. Consumido pelo desespero, empunha uma arma e circunda de forma deprimente a plataforma cênica, em atitude tão animalesca quanto aquelas bestas que tenta caçar. As ovelhas e os coelhos podem estar sinalizando que algo estranho se esconde no bosque. Assim refugiado na ilusão, desbasta o peso da culpa que recai sobre os seus ombros.     

Jude é vivida com ímpeto e intensidade por Carolina Fabri, que clareia a incredulidade e as desconfianças da fazendeira. Ansiosa em proteger o marido e a vida deles, ela só quer a partida do inspetor, que há dias se instalou na sua residência e passou a demonstrar crescente atração por ela. Carol Vidotti incorpora Sarah, a vizinha autodeterminada e desafiadora que alerta sobre o arbítrio e o perigo simbolizado pelos caçadores. No entanto, ser flagrado denunciando o embuste é extremamente perigoso – faíscas escapam em um confronto dela com William. Sua lealdade à amiga, inclusive, será posta à prova. 

Ousada e perturbadora, a dramaturgia ilustra a exploração da crença como ferramenta útil de manipulação das massas para se fomentar um caldeirão de fanatismo e construir um ambiente fascista. Escassez de alimentos, aquecimento global, doenças, ideologias autoritárias, políticas belicistas e notícias falsas produziram um clima de paranóia e intolerância. A autora cutuca o vespeiro. As tais raposas, que ninguém nunca avistou nem ouviu e tampouco viu pegadas, podem se insinuar em seus sonhos, ler sua mente e contaminar comunidades com doses de fundamentalismo religioso ou político e ideias perigosas. São bodes expiatórios convenientes para governantes justificarem suas próprias falhas e incapacidades.

Se hoje é politicamente incorreto culpar minorias quando as coisas não funcionam direito – vide exemplos como o dos judeus na Alemanha hitlerista e os refugiados de países pobres na Europa -, incriminar animais não deixa de ser uma narrativa oportuna. Uma frase inquietante é despejada próximo do desfecho: “a ausência de uma raposa é mais um sinal de sua presença e faz parte da normalidade”. A besta não está lá fora, mas dentro de nós. A impressão é a de que chafurdamos em um estado orwelliano moderno.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Halei Rembrandt)

 

Avaliação: Ótimo

 

Foxfinder – A Caça

Texto: Dawn King

Direção: Wallyson Mota

Elenco: Carolina Fabri, Eduardo Mosri, Carol Vidotti e Ernani Sanchez.

Estreou: 02/05/2022

Teatro Sérgio Cardoso (Rua Rui Barbosa, 153, Bela Vista). Segunda e terça, 19h. Ingressos: Grátis. Reserva pelo site da Sympla. Em cartaz até o dia 14 de junho.

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