Teatro: Cabaret dos Bichos

Um cabaré decadente e esfumaçado serve de ambiente para uma envolvente adaptação musicada de A Revolução dos Bichos (1945), o provocativo e provocador romance do escritor e jornalista britânico George Orwell (1903-1950). Socialista democrático, o autor examina a revolução soviética, numa releitura feroz e satírica sobre o desvirtuamento de seus princípios originais e o papel exercido por algumas de suas personalidades históricas, como Josef Stalin, representado por Napoleão, e Leon Trotsky, simbolizado por Bola de Neve.

Sob arrojada assinatura de Zé Henrique de Paula, a montagem faz uso da estrutura do metateatro para desenvolver o enredo, conduzido por uma trupe de artistas saltimbancos. Com acento circense e recursos do vaudeville, o espetáculo reedita fundamentos caros ao universo dramatúrgico e musical de Brecht e Kurt Weill - interação direta com o público, personagens que espelham classes sociais, a história filtrada pela metáfora e o grotesco crivado pela chave do humor. 

A fábula sombria transcorre em uma fazenda. Insatisfeitos com as más condições em que vivem, os bichos tocam uma insurreição contra o proprietário explorador e o expulsam da Granja do Solar, agora rebatizada Granja dos Bichos. Líderes do motim bem sucedido, os porcos Napoleão, Bola de Neve e Gogó engendram o Animalismo, um sistema de pensamento escorado na minimalista sentença “quatro pernas bom, duas pernas ruim”. Uma nova bandeira é perfilhada e um hino composto, cuja letra realça ideais de igualdade, liberdade e solidariedade. O ímpeto revolucionário, no entanto, acaba sendo gradualmente revertido. Intelectualmente ardilosos, os suínos começam a abraçar privilégios que anteriormente condenavam. Napoleão aplica um golpe no companheiro de luta, assume o poder absoluto e passa a reprimir violentamente os opositores. Com comida de menos e trabalho de mais, os animais são diariamente doutrinados pela propaganda e instados a cultuar a imagem do autocrata. 

Dinâmica e imaginativa, a direção se aproveita da narrativa da repressão política e policial e a manipulação da subjetividade, temas de fundo da obra, para fincar pontes e nexos com a realidade política brasileira. O exílio de Bola de Neve, por exemplo, é em Curitiba. Líderes não têm provas, mas convicções. Em solo musical, um porco faz gestos de armas com as mãos. Episódios como os de Brumadinho e Mariana e a lembrança do assassinato de Marielle são ecoados em cena. Nesta versão, nem todas as criaturas da fazenda ganharam corpo e voz, mas as que circulam pelo espaço condensam e traduzem fielmente o sentido e a essência do livro. E a montagem delineia uma surpresa, ativada pelo surgimento pontual de uma figura basilar (Rodrigo Caetano, em pulsante desempenho) extraída do clássico 1984, do mesmo autor.   

Em clima de festa e dissipação, e afinado com a música e a interpretação, o elenco homogêneo se desdobra em oito personagens, ora povoando o diminuto palco ora transitando entre mesas, sofás e cadeiras. O dispositivo cênico simples e funcional de Cesar Costa exprime simbolicamente um cabaré berlinense, onde se bebe, come, dança e se assiste shows. Quem pilota a casa é um sarcástico Mestre de Cerimônias, vivido com especial malícia e desembaraço por Zé Henrique de Paula (substituto de Pedro Silveira, de atuação contagiante). Em representação robusta, Dennis Pinheiro dá vida à Napoleão, o porco opressor que adota comportamento humano, como dormir em camas e fumar cachimbos. Flávio Bregantin imprime relevo na composição de Bola de Neve, defensor da estratégia de espalhar a sublevação para outras propriedades da região. Gogó, porta-voz que vive justificando as regalias e impulsos autoritários do chefe, transpira viscosidade na criação de Fernando Lourenção. Dono de boa presença cênica, Daniel Cabral interpreta um cavalo devotado à causa revolucionária, fadado a um destino trágico. Em correta medida, Bruna Guerin e Amanda Vicente (éguas) e Fabiana Tolentino (cabra) se projetam em seus respectivos papéis, preenchendo-os de impulso, vitalidade e despojamento.   

A equipe criativa tonifica o trabalho. Fran Barros concebeu um desenho de luz que instaura diferentes atmosferas tanto para as passagens da fábula orwelliana quanto para os números musicais dentro do cabaré. Zé Henrique de Paula produziu figurinos que não plagiam os animais, mas ilustram as suas personalidades. A diretora musical Fernanda Maia, que rege a irradiante orquestra, compôs belas canções originais que ajudam a avançar e comentar a trama. As coreografias de Gabriel Malo e a direção audiovisual de Laerte Késsimos são competentes.

Orwell acreditava que as revoluções tinham o condão de mudar o poder de mãos, porém, sem transformar seus alicerces sociais básicos. Parece que estamos irreversivelmente fadados à sina de, independentemente do espectro político, termos uma casta de poucos poderosos a explorar uma maioria sem direitos. No enredo fabular, que num ângulo mais amplo esquadrinha a gênese dos regimes totalitários, o desejo de comunhão e liberdade é gangrenado pela ambição e o domínio alcançados pelos porcos.

As diferenças entre humanos e os porcos governantes se esfarelam ao longo dos anos. Os animais da granja já não sabiam mais distinguir quem andava de quatro pernas e quem tinha duas. Orwell certamente leu Esopo - em suas fábulas morais, o escritor da Grécia Antiga exibia humanos animalizados e animais humanizados. O último mandamento da granja, após o torpe apagamento dos anteriores, é paradigmático. “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros”. A utopia virou distopia.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Ótimo

 

Cabaret dos Bichos

Dramaturgia, Letras e Direção: Zé Henrique de Paula, a partir do romance A Revolução dos Bichos, de George Orwell

Música Original e Direção Musical: Fernanda Maia

Elenco: Amanda Vicente, Bruna Guerin e Luci Salutes (alternantes), Dan Cabral, Dennis Pinheiro, Fabiana Tolentino, Flávio Bregantin, Fernando Lourenção e Pedro Silveira.

Estreou: 23 de maio

Núcleo Experimental (Rua Barra Funda, 637, Barra Funda). Segunda e terça, 21h. R$ 30 (ingressos vendidos pelo Sympla). Em cartaz até 5 de julho.

 

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