Teatro: Virginia

O palco vazio parece bordar um mundo impalpável e cerebral.  Na pele da escritora inglesa Virginia Woolf (1882-1941), Cláudia Abreu caminha pelo ambiente cênico envergando um vestido branco. Sua expressão é sobrecarregada e, de repente, enseja movimentos de quem acabou de submergir. Em meio ao barulho da água perfurada pelo corpo prestes a perder de vez os sentidos, passa a conjurar um conjunto de lembranças, reflexões, vozes.

Escrita pela atriz, e dirigida com emoção límpida e simplicidade por Amir Haddad (codireção Malu Valle), o monólogo começa envolvente. O público é instado a imergir na mente de uma mulher que, aos 59 anos, fustigada por mais uma crise mental, encheu de pedra os bolsos do seu casaco e se afogou no rio próximo de sua casa de campo, onde morava com o marido editor - seu cadáver foi descoberto três semanas depois por grupo de crianças. Antes da trágica decisão, ela havia deixado uma carta para sua irmã e outra para o companheiro.

Para dar conta do multifacetado inventário pessoal da artista, Cláudia leu os seus diários e ensaios e revisitou as suas principais obras, como Mrs. Dalloway (1925), Ao Farol (1927) e As Ondas (1931). Nutrida desse pulsante substrato encenável, construiu uma dramaturgia comovente, de recorte humano e não literário, que flagra a romancista em um instante simbólico, aquele milésimo de segundos anterior ao fim. Talvez tenha se inspirado no princípio de que a proximidade da morte pode suscitar uma montagem da vida, de onde emergem as passagens mais significativas de uma existência. Ao longo de quase uma hora, habita uma criatura atormentada por seus fantasmas interiores, que nunca se ajustou às normas e convenções sociais e se refugiou na literatura. Valendo-se do dispositivo narrativo do fluxo de consciência, que marcou o estilo literário de Virginia Woolf, ela se embrenha sem medo nas memórias atemporais da personagem - os pensamentos, sensações, ideias, dúvidas e questionamentos fluem sem pausas e pontuações.  

Com lente de aumento, o vai e vem emocional conduz para o centro aspectos da existência atribulada da ensaísta. A angústia que vivenciou bem jovem após a morte da mãe, o assédio sexual sofrido do meio-irmão, os colapsos mentais nunca diagnosticados e o estigma daí decorrente, a impossibilidade de frequentar a escola, a convivência com o pai autoritário e a irmã portadora de problemas mentais, a assimetria conjugal, a atuação no círculo de intelectuais, o ímpeto feminista, a inclinação bissexual - ela foi amante da aristocrata poetisa inglesa Vita Sackville-West. Aos poucos, a peça vai compondo uma poderosa meditação sobre a condição feminina, desdobrando ainda a questão de como a loucura não necessariamente se contrapõe à lucidez.  

A direção estabeleceu para a atriz uma performance matizada, que oscila do depuramento de gestos, à modulação vocal e aos movimentos detalhistas, estes esculpidos por Marcia Rubin. Sem carregar a mão, os sentimentos são transfigurados em cena e alcançam plena comunicação artística. Dona de recursos expressivos, que impulsionam o texto e concedem credibilidade ao conflito existencial, Cláudia pinça de cada palavra sua essência. Replica a mesma inventividade da origem literária, ao se apropriar do universo cheio de nuances da autora.  Eventualmente a tensão subjacente é atenuada em sequências em que se entrega à leveza da dança. Capturada, a plateia testemunha um trabalho rigoroso, de contornos delicados e de visível teatralidade.

Como a estrutura narrativa abre-se para a polifonia, o recurso permite a instauração de uma dinâmica em que se pula da fala de um para o discurso de outro, logo sucedido pela dicção de um terceiro e sua substituição por um quarto. O coro tem o condão de desnudar as inquietações e as reações de cada um, os pontos de intersecção entre eles, de como um espelha o outro em diferentes ângulos, como se fosse uma música dissonante em vários tons. A mudança sutil de narrador transcorre sem que seja preciso demarcá-la com tintas pesadas. A força da peça, que jamais perde a voltagem e o interesse, está em seu enfoque decididamente humano. Ao mesmo tempo em que amargou a consciência de viver num tempo e espaço dominados pela beligerância e masculinidade, Virginia Woolf revelou admirável capacidade de transcendência.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Rogério Faissal)

 

Avaliação: Ótimo

 

Virginia

Texto e Interpretação: Cláudia Abreu

Direção: Amir Haddad

Codireção: Malu Valle

Estreou: 09/07/2022

Sesc 24 de Maio (Rua 24 de Maio, 109, Centro). Quinta e sexta, 20h; sábado e domingo, 18h. Ingresso: R$ 12 a R$ 40. Em cartaz até 7 de agosto.

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