Teatro: O Ninho, um recado da raiz

Uma história de amor que não podia se realizar, um jovem que foi abandonado em um convento e vagueia em busca de suas raízes familiares, um homem idoso que se martiriza batendo com uma pedra em sua cabeça. Esta parábola sobre intolerância e ódio transcorre em um canavial no interior de Pernambuco, um lugar onde os segredos podem ser guardados para sempre, mas gradualmente vão se revelando.

A dolorosa existência de personagens indo ao encontro de uma tragédia ganhou contornos poéticos e substrato político pelas mãos do dramaturgo e diretor Newton Moreno, que concebeu o trabalho a partir de um dado histórico: houve época em que uma célula nazista se instalou em uma fazenda no entorno da cidade de Recife. Documentos preservados no Arquivo Público no Estado de Pernambuco registraram que no século passado um poderoso empresário local acolhia nazistas egressos da Alemanha hitlerista para trabalhar em suas terras. As pesquisas empreendidas por Moreno se somaram às investigações acadêmicas de pesquisadores acerca da presença dos nazistas no Brasil e nas Américas e o farto material levantado municiou a sua dramaturgia. 

Despojada, a encenação flerta o tempo todo com o trágico e apresenta a obra em curvas, sem prejudicar os seus sentidos. A montagem escora-se no tripé formado pelo texto instigante, a interpretação coesa e a música pulsante. A trilha original de Zeca Baleiro executada ao vivo pulsa em sintonia com o mis-en-scène e nunca se sobrepõe ao tratamento dramatúrgico. Moreno vai tecendo a ação sem arroubos e priorizando a gestação da emoção. Nada parece artifício. Ele evita o lugar-comum e as soluções edulcoradas. Cenas surpreendentes se sucedem – em uma delas, vivos e mortos se cruzam.   

O elenco comprometido reúne performances marcadas por traços delicados. Em dupla função, Paulo de Pontes deságua sua amarga lucidez na representação do avô e brilha ao entregar expressão transfigurada na contundente conversa com um parente. Já na pele do senhor da fazenda, emula as feições do ditador chileno Pinochet. Como uma figura bíblica, Jorge de Paula dá vida ao jovem que ansia resgatar sua real origem e compreender a sina a que foi relegado. Em desempenho convincente, Tay Lopes incorpora o expatriado que cumpre a inevitabilidade de um desígnio. Ele precisa mascarar sua identidade – “não ganhe intimidade com ninguém da região”, “o único lugar seguro é o esquecimento”, é avisado logo ao chegar. Expressiva, Badu Morais faz a moça da região envolvida em um romance proibido e cruelmente paradoxal. Kátia Daher e Rebecca Jamir infundem segurança, força e desembaraço aos seus papéis.   

O cenário conciso e não realista de André Cortez, com destaque para um nicho delimitado por tiras de tecido, sugere liricamente a aparência de uma fazenda canavieira. Neste espaço, os personagens entram, saem, bisbilhotam e se escondem. Um equipamento manipulado pelos atores simula sons de temporais e um ninho cênico se abre para diversas analogias – pode ser o ninho da serpente do extremismo, a simbologia da vida em desenvolvimento, um refúgio de proteção e acolhimento, a conexão com tradições espirituais. A cenografia dialoga com a iluminação de Wagner Pinto, que demarca os planos narrativos, e os figurinos vibrantes de Fabio Namatame.  

Há algo de perturbador nesta paisagem geográfica e humana. Os diálogos muito bem articulados, de fortes referências culturais nordestinas e nítidos traços populares, fisgam imediatamente o espectador. Próximo do desfecho, um personagem rompe a quarta parede e, em meio ao público, vomita um discurso poderoso e incômodo sobre a importância de nunca esquecermos do fato de que o ódio é uma erva daninha que nunca morre e teima em se esgueirar pelas frestas e fissuras da sociedade.

O texto pode até ensinar que às vezes coisas ruins acontecem simplesmente porque acontecem. Vista de perto, a condição humana não é mesmo muito normal. O buraco, no entanto, é mais embaixo. Nas entrelinhas sobressai o recado de que devemos ouvir os ecos malignos da intolerância. Nós nos enganamos se pensarmos que o passado já passou. A ascensão de ideias e valores politicamente extremistas no mundo é visível. A peça soa como uma trama de fantasmas que assombram a consciência das pessoas.

(Edgar Olimpio de Souza - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Ronaldo Gutierrez)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Ninho, um recado da raiz

Texto e Direção: Newton Moreno

Dramaturgia: Bernardo Bibancos

Elenco: Paulo de Pontes, Tay Lopez, Kátia Daher, Badu Morais, Rebeca Jamir e Jorge de Paula

Estreou: 15/03/2024

Sesc Bom Retiro (Alameda Nothmann, 185, Campos Elíseos). Sexta e sábado, 20h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 15 a R$ 50. Em cartaz até 21 de abril.

 

Comente este artigo!