Ricca: "Tem colegas que adoram ser atores de aluguel"

Marco Ricca é um profissional diferenciado. Dificilmente é visto em revistas de celebridades, exibindo-se em camarotes de carnaval ou expondo sua vida pessoal em programas de auditório. “Ser ator é um ofício como outro qualquer. O que faço fora dos palcos, dos sets de filmagem e dos estúdios de gravação não deveria interessar às pessoas”, justifica-se. “Mas, infelizmente, vivemos a era da sociedade midiática.”

Aos 47 anos, exibe sólido currículo teatral, pontuais participações em telenovelas e minisséries e incursões elogiosas pelo cinema. No momento, dirige em São Paulo a peça A Grande Volta, do autor belga Serge Kribus, em montagem estrelada por Fúlvio Stefanini e Rodrigo Lombardi. E dá os últimos retoques na agenda do filme Cabeça a Prêmio, que marca sua estréia como diretor de cinema. Adaptado do livro homônimo de Marçal Aquino, o longa estréia em circuito nacional no próximo dia 6 de agosto.

“Não estou me aposentando da interpretação, só buscando outros exercícios, querendo provar novas possibilidades dentro da carreira”, conta, ele que trabalhou como office-boy e chegou a ser professor de história antes de virar ator. Nesta entrevista, revela as razões que o levaram para a televisão, critica a mídia de celebridades e detalha sua estréia como diretor de cinema, além de abordar a peça, que seria encenada por Paulo Autran (1922-2007), declarar seu amor ao teatro e tecer algumas reflexões sobre a profissão. “Alguns atores gostam de envolver com a obra, observar e refletir a sociedade, enquanto outros só pensam no sustento, sem compromisso ideológico e estético com a arte.”   

 

Edgar Olimpio de Souza

  

A Grande Volta estava nos planos de Paulo Autran?

Era um projeto pessoal dele, desde 2001. O Paulo começou a traduzir o texto, mas o sucesso da montagem Visitando o Sr. Green, que ele protagonizava, foi adiando os planos. Agora a peça foi oferecida a mim como ator, mas fiquei com mais vontade de dirigir do que atuar. O Serge Kribus escreveu uma comédia dramática cheia de leituras e camadas psicológicas. O Fúlvio Stefanini, que faz um ator ultrapassado, chega sem avisar na casa do Rodrigo Lombardi, o filho publicitário recém-separado e em crise. A peça mostra como esse reencontro é difícil, de como pai e filho se parecem nos discursos, nos erros, nos medos, na loucura. No fundo, é uma história de amor, solidão, sonhos, balanços de vida, de uma profunda humanidade. Aliviada pelos toques de humor que o autor injeta.

 

Está se aposentando da carreira de ator?

Claro que não, estou apenas buscando outros tipos de exercícios. No teatro eu já me testei em todas as funções e no cinema estreei como cineasta há pouco. O fato de ter adorado assinar a direção de um longa-metragem e estar dirigindo esta peça não significa dizer que abandonei a interpretação. Só quero provar outras possibilidades dentro da carreira. Não desejo ser uma decepção ambulante. O filme, por exemplo, foi uma experiência maravilhosa, deu novo gás para atuar outra vez. Inclusive já pintaram convites para fazer cinema como ator. Estou com ânimo redobrado para dirigir, atuar, produzir, escrever. Tenho um monte de projetos em mente, os fantasmas estão começando a me perseguir.

 

O que te encantou em Cabeça a Prêmio?

Assim que saiu o livro do Marçal Aquino eu quis comprar os direitos de adaptação, que acabaram nas mãos do produtor Rodrigo Teixeira. Acho o Marçal um dos maiores escritores e roteiristas brasileiros. A trama é um mosaico de encontros e desencontros familiares e amorosos, que acontecem em um ambiente marcado por atividades ilícitas. É um filme que fala de seres humanos, das relações entre pai e filha, irmão e irmã, do que o amor é capaz de fazer e cometer, da desinformação que gera a tragédia. O tráfico de drogas, o contrabando, a contravenção, funcionam apenas como pano de fundo. O curioso é que o longa já começa com os personagens se afundando na lama. O livro tem estilo coral, são diversas histórias que não seguem uma ordem convencional. Na adaptação, decidimos desenvolver a trama de forma linear para poder verticalizar mais os personagens. No fundo, o que a gente mostra é a dor do ser humano.

 

Não deu vontade nem de uma aparição relâmpago, como o Hitchcock costumava fazer nos seus filmes?

Eu adoraria interpretar qualquer um dos personagens, mas não quis misturar as estações. Eu estava tão entretido na direção, que já ocupa um baita tempo, tão tomado pelo espírito da história, que não conseguia me ver na tela. Tinha que ter concentração total porque foi um trabalho diferente de tudo o que eu já tinha feito antes. Então aproveitei minha bagagem teatral para depurar as minúcias da interpretação do elenco.

 

Que lições você extraiu desse trabalho?

Numset de filmagem aprendi a importância de se delegar tarefas, de agregar as pessoas. Sem isso, você destrói o trabalho. Alguém falou para mim: ´Um filme a gente não acaba, abandona´. Eu também escrevi esse roteiro, com o Felipe Braga. É um processo diferente do que acontece num teatro. Uma peça muda dois anos depois, transfigurada pelo público. No cinema, em algum momento tem que rodar o último take. É cruel editar o material todo filmado. Tivemos que cortar muitas tramas paralelas.  Na montagem, virou outro filme.

 

E a distribuição do filme, não é outra novela?

De uns quinze anos para cá o Brasil produz aproximadamente setenta filmes por ano. É um número expressivo, mas continua sendo muito difícil arrumar dinheiro para filmar. Não bastasse toda a maratona de levantar a produção, filmar, montar, tem a distribuição, fazer com que o longa seja exibido em boas salas e visto por muita gente. Por isso costumo recomendar que, em se tratando de filme nacional, deve-se correr para assisti-lo antes que o tirem rapidamente de cartaz. 

 

Foi complicada a sua migração do teatro para a tevê?

Bem difícil. Eu sentia muitas dúvidas, demorei vários anos para aceitar os convites. Mas chegou um momento em que perdemos o Teatro Bixiga porque a proprietária elevou bastante o aluguel. Foi uma ruptura dolorida por conta da história que havíamos construído naquele espaço. Naquela época, vinte anos atrás, não existiam outras possibilidades de sobrevivência como hoje, com grupos de teatro, apoios culturais, leis de incentivo. A gente vivia da bilheteria, vendia cerveja no bar. A migração acabou sendo uma necessidade porque o teatro havia acabado para mim. Topei mudar de vida, descobrir novos eixos, mas nunca abandonei os palcos. 

 

O ator Luis Mello disse que foi para a televisão porque precisava comprar eletrodomésticos...

Ele disse que não se via envelhecendo bem lá no CPT (Centro de Pesquisas Teatrais), do Antunes Filho, que precisava viver com dignidade financeira. Não dá para achar que um profissional tem que ganhar pouco. O Luís não deixou de exercer o ofício dele de forma digna, só passou a ganhar um pouco mais. De certa forma a atitude dele, que gerou polêmica na época e um bate-boca interminável com o Antunes, serviu para demolir um preconceito, essas máximas da profissão. Na tevê eu conheci o Antônio Fagundes, os pequenos e grandes atores, os que estão nascendo e partindo. No Brasil, para sobreviver, ou o ator faz publicidade ou baile de debutante. A gente tem de saber roubar o que há de melhor em tudo. A minha casinha continua sendo o teatro.

 

Por que as novas gerações de atores preferem televisão a teatro?

Grosso modo, hoje a atividade é rentável, as escolas de teatro se proliferam, todo mundo quer ser ator. Os pais apóiam, virou profissão de classe média alta. Mas a tevê não é a única possibilidade de trabalho que existe. Acho que os atores, especialmente os da nova geração, não deveriam fazer apenas novelas, mas teatro também. Quando comecei na carreira, não havia esse glamour em torno do ator, nenhum pai queria que os filhos seguissem essa profissão. Bem diferente de agora. Volta e meia alguma mãe me aborda na rua querendo saber como encaminhar os filhos para a Globo.

 

Não percebe uma certa vulgarização na profissão? Muitos atores parecem mais preocupados em falar de namoros, mostrar a casa...

Infelizmente vivemos a era da sociedade midiática. Ator está sendo confundido com celebridade instantânea. É uma luta constante para se diferenciar os dois. Quero acreditar que, entre mortos e feridos, o público saiba a diferença. Há muitas revistas de celebridades e fofocas no mercado. Destacam mais a vida privada que o trabalho. Para mim, ser ator é um ofício como outro qualquer. O que faço fora dos palcos, dos sets de filmagem e dos estúdios de gravação não deveria interessar às pessoas. Mas esse tipo de mídia impinge o interesse pela futilidade e frivolidade.

 

Já se viu alvo dessa sociedade midiática?

Tive uma experiência horrível. Na época que montei Ricardo III, em 2006, coincidiu do Celso Frateschi encenar o mesmo texto, num teatro menor e com produção mais modesta. Aí a mídia criou uma discussão tola, contrapondo o espetáculo “riquinho” ao “pobrinho”. Na peça de Shakespeare há questões sobre todos os tipos de poder, inclusive midiático, e conspirações que passou batido. A reflexão profunda não aconteceu. A mídia se especializou no vazio e vendeu o nada. Uma crítica elaborada talvez não vendesse jornal.

 

Pelo jeito, aposta-se no nivelamento por baixo...

Quando apresentei Cabeça a Prêmio no Festival Internacional do Rio de Janeiro, no ano passado, o número de fotógrafos que apareceu na sessão foi impressionante. Virou um paredão que acabou atrapalhando a estréia. Eles não estavam ali para falar do longa-metragem, mas para registrar a roupa dos convidados, mostrar fulano com beltrano, correr atrás de alguma celebridade. É um fenômeno mundial.

 

Acha que na televisão o critério principal para selecionar um ator é a estética?

Tem coisas que são assim mesmo. Não dá para negar que a tevê brasileira gosta de beleza, assim como o cinema americano. É só observar quantos atores e atrizes bonitos trabalham em Hollywood. Os melhores personagens nas novelas, no entanto, não estão necessariamente nas mãos dos protagonistas. Veja a Bárbara Paz, que está arrebentando em Viver a Vida. No livro Cabeça a Prêmio, o personagem Miro é descrito como um fazendeiro gordo como um boi. Não podia chamar um galã esbelto para o papel. Daí porque escolhi o Fúlvio Stefanini.  

 

Ser chamado de ator global incomoda?

Já me chateou muito. Em Crime Delicado, um crítico da revista Veja escreveu que o diretor Beto Brant havia apelado para um ator global. Na ocasião eu trabalhava na Rede Globo. Não posso fazer nada se ele assiste mais tevê que cinema e teatro. Não cabe a mim educá-lo. No fundo, a intenção é usar a Globo de forma pejorativa e, por tabela, desqualificar o profissional. Trabalhar em jornal x, revista y invalida o trabalho de um jornalista? No cinema americano a gente não corre para ver o De Niro?. Por que não correr atrás do Antônio Fagundes para ver o que ele está fazendo? Certa vez me chamaram de galã global. Eu fiz poucas novelas, mais de 25 filmes e mais de trinta peças de teatro. Como eu já disse, não posso fazer nada se infelizmente as pessoas só assistem televisão e não vão ao cinema e ao teatro.

 

Mas um rótulo quando pega destrói a carreira...

O ator precisa saber encaminhar a sua carreira. Aquele que se presta a querer fazer sempre a mesma coisa corre o risco de cansar e virar caricatura. Tem colegas que fazem dessa profissão um sustento e adoram ser atores de aluguel. Outros preferem criar, se envolver, experimentar. O ator é o cara que observa o mundo e se utiliza dessa observação para compor os personagens ou criar uma obra. Ele reflete a sociedade. Já o intérprete é aquele que não tem compromisso ideológico e estético com a arte. Isso não significa que uma opção é melhor que a outra, que o ator é superior ao intérprete. São jeitos diferentes de encarar o ofício. Eu gosto e tento tomar conta da obra, escrever, dirigir, produzir. Não sei se sou um grande ator, um grande intérprete. Só sei que já fiz grandes personagens. 

 

Acha que a novela tem dramaturgia pobre?

Como se trata de um folhetim diário, a novela obedece a alguns procedimentos básicos. Se um telespectador perde dois capítulos, por exemplo, ele precisa ser lembrado do que está acontecendo. Se não for assim, ele deixa de acompanhar. Então é normal que uma novela tenha redundância, diálogos repetitivos, cenas a mais, certa superficialidade. Claro que isso empobrece a dramaturgia. Mas, mesmo dentro dessa limitação, há autores que merecem que a gente tire o chapéu. Escrever sozinho essa quantidade de texto todo dia, segurar a audiência, saber que não pode parar, é uma maluquice.

 

E no caso das minisséries?

Aí já é diferente. Há mais profundidade, consistência dramatúrgica, personagens mais verticais. A novela é um gênero que tem muita lenha ainda para queimar, mas a tendência é que desapareça aos poucos. Quando estreei na tevê, em 1993, Renascer alcançava 70 pontos no ibope. Hoje, se uma novela atinge 40 pontos, é espetacular.

(Foto da página inicial: Marcos Camargo / Filme Via Láctea - Produtora Girafa Filmes)

 

 

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