Abreu: "O teatro anda muito simplório"

O dramaturgo e roteirista de cinema e televisão Luís Alberto de Abreu é uma espécie de professor que transforma seus ouvintes e que gosta de aprender com os seus alunos. Um de seus segredos, aliás, é justamente prestar atenção nas histórias que colhe em casa, no trem, no ônibus, no bar, no caminho, em qualquer lugar. “Eu adoro pesquisar, ler, contar e ouvir histórias”, costuma dizer ele, que estreou profissionalmente em 1980 com a peça Foi Bom, Meu Bem?. Quando fica comovido, emocionado com alguma imagem, ali nasce algo que depois se traduz em um enredo, uma peça, um filme, um livro.

Aos 58 anos e três décadas de carreira, já escreveu mais de sessenta peças teatrais. No repertório, a antológica Bella Ciao (1982), a instigante O Livro de Jó (1995), encenada num hospital pelo Teatro da Vertigem, e a premiada Auto da Paixão e da Alegria (2002), recriação da morte e ressurreição de Cristo sob a perspectiva da cultura popular. Como roteirista de cinema brilhou com os filmes Maria (1985), Kenoma (1998) e Narradores de Javé (2000). Na telinha, foi autor das elogiadas minisséries globais Hoje é Dia de Maria (2005) e A Pedra do Reino (2006). “Se há um elemento comum e fundamental a todas essas linguagens artísticas, é o ritmo, o pulso e a vitalidade de cada uma”, ensina ele, que organizou e coordenou o núcleo de dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André, em São Paulo, referência na área. Nesta entrevista, Abreu explica seu método de criação, disseca os gêneros dramático e cômico,  esmiúça o controvertido processo colaborativo e cutuca o teatro feito hoje em dia.   

 

Rodrigo Antunes Corrêa (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

 

Você queria drama, mas acabou fisgado pela comédia. De onde vem sua paixão pelo cômico?

Não sei, talvez tenha vindo da minha própria formação. Eu nasci em São Bernardo do Campo e convivi com nordestinos, que são muito engraçados e têm um tipo de humor medieval, de praça, de festa. Vem daí meu gosto pelo humor. Embora eu faça também e goste muito de trabalhar o drama, o humor é mais prazeroso.

 

Quais são as suas influências teóricas?

As influências teóricas vieram a posteriori: Aristóteles, Zeami, Herbert Read, Walter Benjamin, Bakhtin e muitos outros. Em princípio, quem me influenciou mesmo foram dramaturgos. Entre os brasileiros, Suassuna, Jorge Andrade, Plinio Marcos e Arthur Azevedo. Depois, os gregos. E diversos outros como Shakespeare, Molière, Brecht, Peter Weiss, Beckett e Heiner Müller.

 

Como se dá o seu processo de criação?

Eu procuro sempre uma imagem. Quando escrevi Guerra Santa, por exemplo, que é uma Divina Comédia ambientada no mundo contemporâneo, a imagem que me veio era a de um sujeito que tentava controlar o braço e não conseguia. A partir disso criei o personagem Dante, um revolucionário, um guerrilheiro da virada dos anos 1970 para 80. Ele se nega a se incorporar ao sistema, se torna bandido e luta contra a injustiça. Uma coisa meio Sendero Luminoso.

 

Um personagem subversivo...

É um revolucionário numa época em que a revolução talvez não fizesse tanto sentido. Ele chega a matar um professor, seu antigo mentor. O Dante “perdeu” o braço, que já comandava o seu próprio ser. Então, se ele tinha que assassinar, assassinava. Trata-se de uma inversão total da Divina Comédia. A imagem pode ser a mais esquisita possível, mas eu tenho de processá-la. A peça ou o texto começa a nascer desse processo.

 

Começar um texto é mais difícil do que desenvolvê-lo?

No início eu não traço por inteiro o perfil do personagem. Ele vai se construindo aos poucos. Se eu elaboro muito bem o enredo, eu prefiro deixar o personagem meio solto e fico observando como ele se vira naquelas ações e naquele destino que desenhei para ele. Às vezes estou querendo escrever um drama e ele toma o rumo do cômico.          

 

Comédia e drama têm estruturas semelhantes?

O tecido do gênero sério é a tragédia, o próprio drama e o melodrama. De certa forma, a referência é o sofrimento humano. O que foge disso é comédia. Uma das características da comédia é a hipérbole, aquilo que é exagerado, transcende o raciocínio previsível e vale-se da repetição. Ela se faz fundamentalmente pelo personagem. Se o gênero sério requer um enredo muito bem elaborado, com unidade de ação, a comédia subverte o padrão narrativo. Só precisa de um tipo, de um caráter tolo, de um defeito físico ou moral para produzir o riso. Por definição, é inconseqüente, feita para destruir e ser reconstruída. Ela degrada tudo, todos e qualquer instituição.

 

E a tragicomédia?

Às vezes a comédia inclui o próprio drama. Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, embute a tragédia dentro de uma visão cômica. A trajetória do protagonista é duríssima, a gente ri muito e se emociona com um velho que em princípio é maluco. Aos poucos, no entanto, vamos compreendendo que há um sentido humano naquelas viagens, na sua busca. Ele vive um amor utópico que, no fundo, existe. Tudo isso é vazado por um personagem cômico. Na Grécia antiga, os gêneros não se misturavam: ou era comédia ou tragédia. Shakespeare foi criticado porque mesclava ambos os gêneros.

 

Acha que essa mistura de gêneros é praticada hoje em dia?

A visão do mundo não é só trágica ou cômica. As duas podem conviver e serem complementares. Por que temos de adotar uma visão absolutamente trágica da vida?Gosto dos autores que buscam a multiplicidade e ignoram as divisões. A arte não pode ser compartimentada numa caixinha. Uma das coisas legais da arte contemporânea é o entrelaçamento dos gêneros. O teatro Nô, por exemplo, equilibra música, dança, poesia e narrativa teatral. A obra de arte contemporânea não tem limites. O crítico e teórico de teatro, Anatol Rosenfeld, afirmava que não existe gênero puro.

 

Sua produção é basicamente cômica?

Nem sempre. Eu fiz um projeto chamado Comédia Popular Brasileira, ao lado da Fraternal Cia. de Artes e Malas-Artes, dirigida por Ednaldo Freire (foto ao lado). Foi um processo de pesquisa que durou doze anos e rendeu a encenação de catorze peças. Começamos com a ComédiaDell´Arte, estabelecendo conexões com a nossa cultura. Passamos depois para os heróis da cultura universal e entramos nos Autos Populares. O percurso buscou refletir essa fragmentação contemporânea, o próprio fracionamento da produção teatral.

 

A comédia tem de ser transgressiva para funcionar?

Seo gênero respeitar status e hierarquias, ele implode. A comédia é infratora por si só, sua função é questionar o status quo, violar a norma. Molière, por exemplo, foi censurado várias vezes porque incomodava a classe dominante da sua época. Se ela é assimilada pelo poder acaba perdendo a sua característica básica. Não existe humor a favor, só contra. Desde os gregos é assim. Aristófanes criticava juízes, políticos, aristocratas, sexo, tudo o que era instituído.  

 

Por que o melodrama faz tanto sucesso?

É bem característico que nossa época tenha especial predileção pelo melodrama. É um gênero que retrata fielmente a perplexidade da maioria de nós diante de um mundo que não mais conhecemos. Um mundo complexo, caótico, violento e inimigo, do qual nos afastamos para o aparente porto seguro de nossa casa e dos nossos sentimentos. É diferente do drama ou da tragédia, nos quais os personagens investem em direção ao mundo para transformá-lo em algo possível de ser ordenado e habitado.

 

Há muita diferença entre escrever para o teatro, cinema e televisão?

Há consideráveis diferenças entre os três veículos. São estéticas muito diferentes. Teatro é uma linguagem quase ritual, participativa, que para mim tem como cerne a experiência. O dramático pressupõe essa experiência, como eu entendo.  Entre o cinema e a televisão as diferenças são menos nítidas, especialmente no que diz respeito ao que tenho feito em televisão, que são minisséries. Na tevê trabalho fundamentalmente o cinema como linguagem, ou seja, fundamentalmente a composição das imagens, diálogos enxutos, uma organização mais épica que dramática. Se há um elemento comum e fundamental a todas essas linguagens artísticas, é o ritmo, o pulso e a vitalidade de cada uma.

 

Muita gente considera a novela uma dramaturgia pobre. Você concorda com essa avaliação?

Não. Talvez se possa ter essa impressão porque a novela de televisão seja uma obra extensa, se tomarmos como referência o teatro ou o cinema. Admiro muito o autor de novelas que consegue manter vivo o interesse do público por seis a oito meses. Isso não se consegue senão com uma dramaturgia muito eficiente e elaborada. Em outras palavras, muito rica.  É evidente que existem dramaturgias em teatro e cinema incomparavelmente mais pobres do que muitas de nossas boas novelas.

 

Faltam bons roteiristas no cinema nacional, como apontam muitos críticos e especialistas?

Em todo mundo faltam bons roteiristas se levarmos em conta a produção. Ou seja, se produz muito, mas a qualidade do roteiro não acompanha esse compasso de produção.  Temos que levar em consideração também que o cinema brasileiro só recentemente começou a reconhecer o roteiro como o desenho arquitetônico de um filme, algo imprescindível para a construção de um bom filme.  Creio que a tendência tem sido uma sensível melhora na qualidade dos roteiros e no número de bons roteiristas, o que deverá continuar daqui por diante.

   

Na sua opinião, o teatro feito atualmente tem priorizado mais a forma do que as idéias?

Parece que isso é geral e não restrito apenas ao teatro.  O fato é que há uma tendência forte na contemporaneidade em reduzir as enormes potencialidades das artes em simples veículos de entretenimento. Isso favorece muito à idéia de mercado que permeia o pensamento atual.  Nesse contexto, as idéias, a inovação e a complexidade do fato artístico se perdem.  O que temos visto atualmente, mais do que priorizar a forma, é a busca insana por uma moldura mais simplista, palatável e consumível de teatro. Um esforço que visa amesquinhar o texto, de substituir a forma artística complexa, cheia de idéias e potencialmente envolvente e explosiva.  O teatro anda muito simplório.

 

Hoje no teatro há uma tendência de muitas peças serem escritas em processo colaborativo, o que tem dividido as opiniões...

Muitos não gostam desse método, que tem como princípio romper qualquer hierarquia pré-estabelecida. O palco não é o reinado do ator, nem o texto é a arquitetura do espetáculo. Todos devem colocar experiência, conhecimento e talento a serviço da construção do espetáculo. É um processo derivado da chamada criação coletiva, que vigorava nos anos 1970 e tinha como principal característica a participação ampla de todos os integrantes do grupo na criação do espetáculo.

 

Qual é a diferença fundamental entre os dois métodos?  

A meu ver, a diferença básica é a introdução de um terceiro elemento no processo de criação: o dramaturgo.  Na criação coletiva, a relação criativa fundamental era entre os atores e o encenador. Havia na época poucos dramaturgos e eles estavam, em geral, muito satisfeitos com o status que desfrutavam como criador do texto e orientador da cena. Aos atores, encenador e outros criadores restavam seguir as instruções do autor.

 

Isso mudou...

Os anos 1970 buscaram modificar essa relação. O dramaturgo, quando tenta na década de 1990 se aproximar da construção da cena, percebe a necessidade de se estabelecer um novo equilíbrio. Isso vai alterar o método de criação, que recebeu o nome de processo colaborativo. No entanto, os princípios que norteiam o processo colaborativo são fundamentalmente os mesmos da criação coletiva.

 

Acha que o processo colaborativo consegue evitar o senso comum?

É preciso conciliar a ausência de hierarquias com a distribuição de papéis, além de abrir mão de pequenas e grandes vaidades pessoais. Tudo isso para estabelecer um acordo entre os criadores, que não é um acordo de cavalheiros. É um acordo tenso, precário, sujeito, muitas vezes, a constantes reavaliações durante o percurso.

 

O que tem feito ultimamente?

Estreei no ano passado um espetáculo chamado Um Dia Ouvi a Lua, com direção de Eduardo Moreira, do Grupo Galpão. O texto é inspirado no teatro Nô e contêm elementos líricos e épicos. Desenvolvi também um trabalho baseado em Kafka e no Rilke, um livro de cada um deles, sobre a figura do pai. O resultado disso foi a montagem Os Nomes do Pai (foto ao lado), que não tinha uma única palavra, só ações e movimentos.

 

Como é a sua rotina quando não está trabalhando? 

Eu tenho quatro filhos, dois rapazes e duas meninas, e dois netos, que ocupam parte de meu tempo de lazer. Moro em Ribeirão Pires, a cinqüenta quilômetros da capital, com minha mulher e meus sogros. É muito bom ter velhos por perto porque despertam na gente o instinto de cuidar. Além disso, eles são muito divertidos e têm histórias para contar. Depois de todas essas tecnologias de comunicação, não preciso mais sair de casa para participar de reuniões. Sou caseiro, mas gosto bastante de viajar, de conhecer outros lugares. Mas nada de seguir em linha reta. A pergunta que sempre me faço é: aonde vai dar essa estrada?

 

 

 

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