Dos palcos para a telinha

Houve um tempo em que ator que pisava num palco dificilmente botava a carinha na telenovela. Eram duas trincheiras que praticamente não se bicavam. O primeiro rendia pouco dinheiro e fama restrita, mas conferia prestígio. O segundo remunerava bem e garantia popularidade, porém, a crítica especializada ignorava. Nos últimos anos, o preconceito de ambos os lados ruiu. Atores de sólida carreira no teatro, que já interpretaram grandes personagens da dramaturgia mundial, agora saltam naturalmente de um Godot para um cangaceiro, de um Shakespeare para Sílvio de Abreu.

Na inovadora Cordel Encantado, novela das seis da Rede Globo, alguns premiados intérpretes teatrais emprestam seus talentos à trama escrita por Thelma Guedes e Duca Rachid, mix de histórias da realeza européia e do cangaço brasileiro. Sãos os casos de Emílio de Mello, João Miguel, Mariana Lima, Domingos Montagner, Matheus Nachtergaele e Zé Celso.

Se estivéssemos nos anos 1980 e 90, eles certamente seriam discriminados pelos colegas de palco por terem se deixado seduzir por uma arte “menor”, apenas para “comprar eletrodomésticos”. Hoje, no entanto, esse debate soa datado. “Imagina, até a Fernanda Montenegro, a grande dama do teatro, faz novela”, ilustra Ricardo Waddington, 50, diretor de núcleo da emissora e supervisor geral de Cordel Encantado.

Quem agradece a diluição das fronteiras é o telespectador, brindado com performances de gala de quem se formou dentro do rigor técnico e densidade psicológica do teatro e agora leva toda essa preciosa bagagem para a telinha. Alguns roubam literalmente as cenas dos galãs e mocinhas conhecidos.

Sem exagero. “Eu continuo não gostando de novela, mas estou contribuindo para resgatar o calor do Chacrinha e mostrar que a arte também dá dinheiro, como provaram os geniais cineastas Rosselini, Pasolini e Fellini, que assinaram vários projetos para a televisão italiana”, provoca o ator, autor e diretor Zé Celso (foto ao lado), 74. Figura polêmica, ele revolucionou os palcos brasileiros com o lendário Teatro Oficina e encenações controvertidas, como O Rei da Vela (1967) e a monumental Os Sertões, com trinta horas de duração. Em sua estréia televisiva, encarna o profeta Amadeus. Em algumas  gravações, a diretora Amora Mautner chega a implorar para que ele não exage tanto na interpretação.

Pouco conhecida do grande público, mas queridinha no teatro, Mariana Lima, 38, tem história no palco. Passou pelo inquieto Teatro da Vertigem, de onde despontou o colega Matheus Nachtergaele, o Miguézim da novela, e arrepiou na pele de uma madame fútil na peça Pterodátilos, que lhe valeu o Prêmio Shell de melhor atriz. Ela, que já havia atuado em O Rei do Gado, de Benedito Ruy Barbosa, vive a Rainha Helena. “Não vejo conflito algum em pular de um para o outro. Ambos exigem talento, técnica e dedicação. A novela é uma obra requintada também”, acredita.

Ainda considerando-se novato na telinha, apesar de ter feito minisséries (Anos Rebeldes, por exemplo) e a novela Pátria Minha, de Gilberto Braga e Alcides Marinho, o ator Emílio de Mello, 45, faz coro. “Preconceito nunca é bem-vindo, trata-se de um trabalho como outro qualquer”, assinala o general Baldini, que até outro dia estava na badalada montagem In On It e atualmente assina a montagem Deus da Carnificina. “Não tenho vergonha de admitir que ainda não sei fazer tevê.”

Premiado pelos monólogos Bispo e , João Miguel (foto ao lado), 41, se diz encantado com o novo trabalho. “O texto tem consistência dramática, textura cinematográfica, fotografia especial e um elenco que reúne diferentes escolas e estilos de interpretação”, elogia ele, chamado para viver o vaidoso Belarmino. O personagem é braço direito do rei do cangaço Herculano, encarnado por outro bicho de teatro, Domingos Montagner, da circense Cia La Mínima, que também viveu um charmoso empresário no seriado Divã.

A máquina. Definitivamente, a migração do teatro para a televisão parece não causar mais traumas e atritos. O primeiro grande ator de teatro que resistiu, mas acabou cedendo, foi Paulo Autran. Sua estréia na novela Pai Herói (1979), de Janete Clair, foi tão comentada na época que mereceu ampla reportagem no Fantástico. Uma segunda “traição” teve como símbolo o ator Luís Melo, estrela da companhia do mago Antunes Filho. Bastou aceitar um papel em Cara e Coroa (1995), de Antônio Calmon, para provocar um terremoto na relação com o cultuado diretor do referencial CPT – Centro de Pesquisas Teatrais.

No início desta década, a peça A Máquina, de João Falcão, fez tanto sucesso no eixo Rio-São Paulo que seus protagonistas Wagner Moura, Vladimir Brichta e Lázaro Ramos foram cooptados pela Rede Globo e hoje passeiam com desenvoltura por novelas, minisséries e seriados. Brichta sua a camisa no seriado Tapas & Beijos e Ramos brilhou em Insensato Coração, de Gilberto Braga e Ricardo Linhares.

Como explica Mauro Alencar, 48, Doutor em Teledramaturgia pela USP – Universidade de São Paulo, a fronteira entre os veículos embaçou de vez. Peças são filmadas e passam na televisão, a internet transmite novelas, o teatro usa recursos de vídeo, o cinema incorpora técnicas televisivas. “Hoje o ator transita por todas as mídias. Não dá para falar em ator de novela, de cinema, de teatro. Ele é simplesmente ator", diz.

Marco Ricca (foto ao lado), 48, o vilão Samir Hayalla de O Astro, de Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro, notou sua conta bancária melhorar quando topou o convite do diretor Luiz Fernando Carvalho para estrear em Renascer (1993), de Benedito Ruy Barbosa. No teatro, o que ganhava dava apenas para cobrir as despesas. Os colegas, os mesmos que hoje transitam sem culpas pela telinha, quase o crucificaram. “Às vezes é preferível fazer novelas que peças de viés televisivo ou publicidade”, desabafa ele, que já interpretou papéis shakespearianos de peso como Hamlet e Ricardo III. “O que importa é trabalhar com dignidade, o teatro não é reserva de mercado dos bons costumes.”

8 Assim como ele, Luís Melo nunca deixou de fazer teatro, onde se consagrou na década de 1990 com os espetáculos Trono de Sangue e Vereda da Salvação. No momento, ilumina o trambiqueiro Oséas em Morde e Assopra, de Walcyr Carrasco. “A televisão mudou, está investindo tempo e dinheiro em projetos mais ousados e de risco, por isso está absorvendo atores com o nosso perfil”, explica ele, que encenou recentemente o ótimo RockAntygona. Para Melo, ao recrutar intérpretes do nível de Emílio de Mello, Matheus Nachtergaele, João Miguel, Mariana Lima e Zé Celso, Cordel Encantado se rende à evidência de que o teatro brasileiro é um celeiro de grandes talentos.

Sucesso a qualquer preço. Quem não gosta nada dessa pulverização que encurta a distância entre as coxias do teatro e os estúdios de gravação é o encenador Antunes Filho (foto ao lado), 81. Ele até entende que os atores busquem uma remuneração mais atraente nas novelas, mas não se conforma quando eles passam a priorizar a publicidade ou levam a linguagem naturalista do folhetim eletrônico para os palcos. “Na televisão, o ator vira um funcionário com trejeitos de ator, se transforma na gracinha da vovó e da titia”, fustiga ele, que poupa Luís Melo, com quem reatou anos atrás. Nem Zé Celso escapa. “Ele gosta de brincar, leva a vida como se estivesse em um playground.”

O dramaturgo Luis Alberto de Abreu (Auto da Paixão e da Alegria / O Livro de Jó), 59, sempre sobreviveu de suas peças. Ao ir para a televisão, onde assinou as elogiadas minisséries Hoje É Dia de Maria (2005) e A Pedra do Reino (2006), não se sentiu vendendo a alma ao diabo. “Quem disse que a tevê é uma linguagem menor? Não é o veículo que determina o grau de alienação, mas o olhar de quem vê”, ensina.

Um dos mais renomados autores de telenovelas (Mulheres Apaixonadas), Manoel Carlos, 78, acha ocioso resgatar esse Fla x Flu que opõe uns e outros. “O que vai fazer a diferença é a qualidade de cada intérprete”, garante ele, que em suas obras costuma valorizar a presença de intérpretes com formação teatral. “Eles têm mais conhecimentos gerais, o que facilita o entendimento do processo”, justifica. A televisão só não garimpa mais gente no teatro porque, segundo o autor, muitos firmam compromissos de longo prazo no palco, o que os impedem de gravar até noite adentro quando necessário.

 

Cara e coroa

“O ritmo da tevê é mais agressivo, não tem reunião de elenco, exige-se resultado a qualquer custo. O teatro é um encontro, ensaio, preparação, estudo” (Marco Ricca)

“No teatro você dimensiona a sua sensibilidade, a concentração, a disponibilidade física, a voz, o corpo. A tevê é mais fechada, atrofia a expressão, se fala quase sussurrando” (Luis Melo)

“Não vejo diferenças na interpretação, essas divisões são reducionistas. Em ambos, o ator tem de transcender, excitar o público” (Zé Celso)

“Uma coisa é você interpretar para 400 pessoas ao vivo, outra é gravar no estúdio. O tamanho do gesto muda” (Mariana Lima, foto ao lado)

“No teatro eu domino todo o processo, o personagem estréia pronto. Na tevê, sou uma peça da engrenagem, o personagem vai se depurando ao longo de oito meses” (Emílio de Mello)

“Na tevê, sou instigado a construir um personagem de uma obra aberta. No teatro, mergulho na psicologia do personagem, na sua dimensão mais profunda” (João Miguel)

(Foto de abertura: novela Cordel Encantado / Divulgação TV Globo)


Edgar Olimpio de Souza

(Reportagem publicada originalmente na Revista da Gol)

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