Falabella: "Não faço teste do sofá, mas da casa inteira"

O ator, dramaturgo, diretor, cineasta e escritor Miguel Falabella não pára. Aos 55 anos, ele continua uma máquina incessante de atividades, embora já tenha percebido que precisa estabelecer prioridades. Uma delas anuncia com semblante decidido: deseja parar de atuar na televisão para se dedicar mais à dramaturgia. Como ator, só em teatro. “Queira ou não, a vida cobra um balanço depois dos cinquenta”, justifica.

Na desgastante rotina de pegar a ponte-aérea Rio-São Paulo toda semana, ele grava em solo carioca o inusitado seriado global Pé na Cova, que escreve e protagoniza, e voa para o palco paulistano para encarnar um comerciante avarento no delicioso musical Alô, Dolly!. Em ambos os trabalhos, ele contracena com a amiga de longa data Marília Pêra, a quem compara ao craque futebolista Messi. “Ela foi a minha primeira diretora de teatro e me disse que eu tinha uma coisa diferente no palco”, orgulha-se.

Falabella ingressou na televisão em 1982, em um episódio do programa Caso Verdade. Daí não parou mais. Entre outros trabalhos, atuou na novela Sol de Verão, escreveu o folhetim Salsa e Merengue e foi autor e ator dos seriados cômicos Toma Lá, Dá Cá e Sai de Baixo, este prometido para voltar nos próximos meses como especial. No teatro também é ativo e empilha sucessos, como a peça A Partilha, que migrou para o cinema, onde ele também marca presença, e As Sereias da Zona Sul, da época do chamado teatro besteirol. Em todos, deixa suas digitais – humor afiado e personagens incomuns.  

Nesta entrevista, ele explica porque o País carece de autores de musicais com sotaque brasileiro, conta que já se habituou às críticas e se diverte com o fato de chamar para os seus projetos televisivos artistas não necessariamente bonitos, porém bastante talentosos. “Mas não posso me queixar, a Globo apóia os meus absurdos.”

 

Por Edgar Olimpio de Souza     

 

O seu ritmo de vida continua frenético?

Vivo num furacão. Gravo Pé na Cova de segunda a quarta no Rio, depois viajo para fazer Alô, Dolly! em São Paulo. Sou hiperativo, tenho excesso de trabalho, responsabilidades e pressão, mas não paro porque me dói ver as pessoas desempregadas. Então invento projeto para encaixar todo mundo. Artista vive na corda bamba. Eu fiz A Partilha e lembro que falei para a Susana Vieira e Arlete Salles para não ficarem preocupadas que o público viria. A peça fez sucesso, acabou no cinema e ganhou montagem em doze países. Em contrapartida, por causa do musical Godspell (2002) quase vendi meu apartamento em São Paulo. Se não deu, vamos fechar o pano e pronto. Sucesso e fracasso são acontecimentos naturais, depende do peso que damos a eles. Existem coisas mais importantes, como a relação com as pessoas, com a profissão, com a vida.

Sua relação com Marília Pêra, na televisão e no teatro, é a melhor possível...

Marília é talentosa, tem amor pelo teatro, parece que brota do palco. Contracenar com ela é um privilégio, gera intimidade cênica. É como compor uma música juntos, observar a respiração do parceiro. Sinto que entro em campo e ao meu lado está o Messi. Ela foi a minha primeira diretora, em 1978, quando estreei no teatro com A Menina e o Vento, de Maria Clara Machado. Éramos um grupo egresso do Tablado (N.R.: fundado em 1951 no Rio de Janeiro por Maria Clara Machado, celeiro de formação de atores). Na época eu morava em Botafogo com a minha tia, tocou o telefone e era Marília: “você tem uma coisa diferente no palco”. Só tínhamos realizado uma apresentação e eu fazia uma pontinha porque fui um dos últimos a entrar na montagem. Foi o aval de que eu precisava para prosseguir na profissão.

Foi por causa de Alô, Dolly! que você despertou para a carreira artística?

Quando eu tinha oito anos, minha avó me levou para ver essa peça. Eu morava na Ilha do Governador e ela gostava de levar os netos para assistir os grandes musicais montados na Praça Tiradentes, no centro do Rio. Era seu presente de aniversário. Vi o espetáculo, estrelado pela Bibi Ferreira e Paulo Fortes (foto ao lado), e fiquei alucinado pelo universo do teatro. A imagem da Bibi no trem nunca saiu da minha cabeça. Na volta para casa, tudo parecia mais colorido. Ali decidi que era aquilo que eu queria fazer para o resto da vida. Alô, Dolly! tem uma carga emocional muito forte para mim.  

O ator brasileiro está mais apto para trabalhar em musicais?

Tem muita gente boa hoje em dia, tecnicamente preparada para formar o ensemble de um musical. Mas já vou avisando: não faço teste do sofá, mas da casa inteira! (risos). A maior parte do grupo eu conheci nos testes. A Karin Hills, por exemplo, eu nem sabia que tinha sido vocalista do grupo Rouge. Vi aquela mulher subindo no palco na audição de Hairspray e não tive dúvidas. Vários jovens estão estreando aqui. As audições, aliás, são fundamentais. Eu nunca passei em uma, mas sempre achei muito importante fazê-las. Cantar é um aprendizado, a gente aprende constantemente, é a grande beleza do teatro. Há sempre uma descoberta, um novo encantamento.

Embora distantes do padrão Broadway, estamos melhorando...

A evolução dos musicais brasileiros é nítida, exibimos cada vez mais condições técnicas. Há mais de trinta anos que vou à Broadway. Chama a atenção como eles são pródigos em elogios, orgulhosos de si mesmos, ainda que alguns espetáculos não sejam aquela Brastemp. Precisamos avançar nisso. Aqui a gente gosta de falar mal dos vizinhos, elogia-se pouco. Seria bacana montar musicais originais e influenciar as gerações seguintes, passar a tocha. Aos poucos a gente vai mudar o panorama, aprender a se gostar, a se respeitar, a dar valor ao que é nosso. É um aprendizado que leva tempo. 

Por que se montam poucos musicais de autores nacionais?  

O País tem um problema sério de autoestima. Eu escrevi uma adaptação de Memórias de um Gigolô, clássico de Marcos Rey, um musical em homenagem à cidade de São Paulo. A trama acontece nos anos 1930, uma época bonita, a cidade explodindo, com o Brasil inteiro vindo para cá. Até agora, no entanto, não consegui patrocínio. Para musicais americanos, arranjar grana é mais fácil. O Nelson Rodrigues estava certo quando disse que o brasileiro é o narciso às avessas, cospe na própria imagem.

Você fica relaxado no camarim?

Que nada, eu faço putaria (risos). A Marília não gosta de saber quem está na sessão. Eu já não ligo. No intervalo, para fazer terrorismo, eu falo para ela: aquele sujeito da primeira poltrona está com cara esquisita. Ou: sabe quem está aí? A Bibi Ferreira, na fila B. O riso é combustível do espírito. Eu me divirto muito em cena também. E meu personagem é delicioso, um comerciante avarento e mal-humorado que contrata uma viúva casamenteira para lhe arranjar uma esposa na cidade grande. O público grita bastante no fim, parece que a gente botou uma máquina de dar choque nas poltronas (risos).

Mesmo falando de um assunto incômodo, a morte, o seriado Pé na Cova caiu no gosto popular...

A morte é o pano de fundo, porque o foco do programa (foto ao lado) está na família disfuncional. Eu gosto do avesso, minha avó me ensinou a olhar o mundo assim. Mostro um Brasil que a gente finge não ver. O meu papel é o de um homem atônito que não está preparado para a realidade de hoje. A Marília interpreta uma maquiadora de defuntos louca, alcoólatra, amoral. O público ama o seu personagem. Meus programas têm sempre um psicótico, um doido, um travesti. Sou excêntrico e pago um preço por isso. A presença do casal gay Tamanco e Odete Roitman, por exemplo, é uma forma de ativismo. Ou seja, não preciso sair portando bandeira na Parada Gay. Mas somos aborígenes. Na coletiva de lançamento do seriado, os jornalistas queriam saber se teria beijo gay. Pode?

Chegou a pensar que o programa não seria aceito pela Rede Globo?

Eu imaginava sim que eles poderiam recusar uma atração que fala da morte e reúne tipos excêntricos. Mas, toparam. Se duvidar, vamos até ter merchandising. Quem sabe, uma fábrica de caixão e velas? (risos) O elenco de apoio do programa não é especialmente bonito. Mas o seriado exala um certo charme porque as situações apresentadas são bizarras, o humor surge do grotesco. É o avesso do avesso, a coisa mais cruel que já fiz. Eles são desvalidos, não têm nada, nem falar direito eles sabem. Mas embora tenha crueldade, também há muito afeto. Pé na Cova é o Miguel da Ilha do Governador querendo espaço, um Miguel suburbano, que lembra o meu pai de chinelo.  

Sai de Baixo, que pode retornar como um especial, também fugia dos padrões?

Aquele programa tinha um diferencial, um tipo de transgressão nunca visto na televisão. Tudo tão inverossímil e maluco, uma farra. A gente inovou sem querer. Sai de Baixo (foto ao lado) foi um humorístico que entrou na história da televisão brasileira ao virar a narrativa de ponta cabeça. O público não amava o programa por acaso. As filas para assistir às gravações no Teatro Procópio Ferreira eram imensas.

A televisão comporta programas transgressores?

A tevê tem uma estética careta, precisa de anunciantes, vive de vender sabão em pó. Mas a gente bota a cabecinha (risos). Eles querem gente linda. A juventude e a beleza mascaram a ausência de preparo. Uma carinha linda pode ser boa de ver, mas não se sustenta sem talento acoplado. Eu costumo dizer que a coisa mais fácil do mundo é entrar na televisão, porque há uma necessidade de renovação, de rostinhos bonitos. O problema, no entanto, é conseguir permanecer lá durante anos.

Hoje a migração dos palcos para a telinha já não é mais novidade, o preconceito da classe teatral contra o veículo acabou...

Esse pessoal de teatro que vai para a televisão é um movimento novo que o público identifica, reconhece e avaliza. É talento genuíno do palco, uma gente que tem algo a dizer e mostrar. Se ninguém abre a porta para eles, eu abro. Uma hora a direção vai me dizer: “tem muita gente feia, velha, tira” (risos). Todas as vezes que apresento minhas novelas sou ironizado: “lá vem o Falabella com seus velhos” (risos). Mas não posso me queixar, porque a Globo sempre tem sido minha parceira e dá apoio aos meus maiores absurdos. 

Por que decidiu parar de atuar na telinha?

Conforme a idade vai avançando, é preciso criar prioridades. Cansei um pouco de trabalhar como ator na tevê. Perco muito tempo gravando e quero me dedicar mais a escrever, criar musicais inéditos para o teatro, tenho milhões de projetos. Gosto do meu escritório, do meu computador. Estou trabalhando agora em The Drowsy Chaperone, que vai se chamar A Madrinha Embriagada, para estrear no Teatro Popular do Sesi, com entrada gratuita. Mas não vou deixar de ser ator, terei sempre o teatro. 

Você dá bola para a crítica?

Já me habituei a ser alvo, sofri toda espécie de bullying de jornalistas. No Brasil, dar certo e fazer sucesso são coisas pejorativas. Parece que você fez pacto com o Diabo, que aprontou alguma coisa. Esse ranço ainda sobrevive. As críticas nunca me jogaram no chão, sou como o boneco João Bobo. Em todo setor e lugar tem alguém falando mal de alguém, criticando o trabalho do outro sem conhecê-lo. O segredo é deixar esse povo para trás e seguir em frente. Não tenho mais a ingenuidade do passado.

Estar na faixa etária dos cinqüenta anos assusta?

Assusta um pouco porque, queira ou não, a vida cobra um balanço nessa fase. O que fiz até aqui? É um momento em que você debruça sobre si mesmo. A partir dos cinqüenta a morte vira uma realidade. Com trinta não pensava nisso. A clareza da finitude o obriga a fazer escolhas mais seletivas. Procuro estar bem para a minha idade, sem ser refém de uma vaidade histérica. Tive a época de desfilar nu no carnaval, mas agora a brincadeira é outra, não dá para ficar agarrado ao mesmo galho. Eu quero ser sueco, aprender a morrer sereno.

(Foto de abertura: Divulgação Rede Globo)

 

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