EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Diário de um louco

Se alguém perguntar ao engenheiro aposentado José Cetra Filho, 71 anos, o que ele fará nesses próximos dias, a resposta será simples e direta: “ir ao teatro”.

Então irá retirar do bolso uma folha de papel, que contém uma grade rabiscada com toda a sua programação teatral da semana.

Assim tem sido a sua rotina nas últimas cinco décadas, desde quando adentrou o Teatro Oficina em 1964 e se deslumbrou ao assistir Pequenos Burgueses, de Máximo Gorki, direção de Zé Celso Martinez Corrêa. 

“A poucos metros de mim estavam Eugênio Kusnet, Etty Fraser, Raul Cortez, Célia Helena, Renato Borghi e Miriam Mehler, atores gigantes que eu mal conhecia”, rememora.

“Eles interpretavam personagens russas, num trabalho que fazia alusão à complicada realidade política brasileira, nos instantes iniciais da ditadura militar.”

Em suas rigorosas contas, sem chances para o chute, ele calcula ter saído de casa, até dezembro do ano passado, um total de 2.906 vezes para ir a uma apresentação teatral.

Detalhe: no momento em que você lê esta reportagem, ele certamente deixou para trás a marca de três mil montagens teatrais assistidas.  

Mais do que crítico, que integra a prestigiada Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Cetra prefere se enxergar como um espectador apaixonado pelas artes cênicas.

Ou seja, na hora de escrever no seu blog pessoal (www.palcopaulistano.blogspot.com.br), não se prende ao rigor analítico dos historiadores nem comunga da alardeada neutralidade dos críticos especializados.

Sua relação com o teatro é cimentada pela emoção genuína, sem pré-conceitos, e consolidada pelas recordações do que viveu e vivenciou no curso dessa trajetória.

Casa tomada. Por sinal, a paixão aconteceu aos onze anos de idade, ao folhear uma revista chamada Teatro Brasileiro e se deparar com o clássico texto Woyzeck, de Buchner.

O impacto foi tão grande que chegou a criar uma encenação imaginária no quintal da sua residência, para estranhamento de sua mãe.

“Eu reservei para mim o papel principal, fiz a direção, elaborei os cenários e batizei o local de Teatro Zezinho”, recorda-se este paulistano, nascido no bairro da Água Branca, numa casa próxima ao atual Sesc Pompeia.

Passo seguinte e lá estava ele fazendo teatro no colégio em que estudava, estreando na pele de um personagem gago capaz de se expressar apenas pelo canto.

Picado pela mosca azul, passou a marcar presença na platéia dos teatros de Arena e Popular do Sesi.

Foi nessa época que começou a cultivar a mania, nunca mais perdida, de guardar os programas das peças, canhotos dos ingressos e as críticas publicadas na imprensa do que assistia, além de rascunhar as suas próprias observações.  

Diligentemente organizado em incontável número de pastas, seu arquivo abriga até objetos cênicos, como pedrinhas que compunham o cenário de Os Sete Afluentes do Rio Ota (2003), peça dirigida por Monique Gardenberg.

Por conta disso, volta e meia ele recebe em seu endereço alunos, pesquisadores, professores em busca de informações sobre o teatro paulistano.

Ovo no sebo. Quem escarafuncha seu singular acervo descobre relíquias como, por exemplo, o programa de O Balcão (1970), lendária mise-en-scène de Victor Garcia para o texto de Jean Genet.

“A encenação era tão fascinante que se tornou atração turística de São Paulo”, pontua sobre o evento, que trazia no elenco pesos-pesados como Sérgio Mamberti, Dionísio de Azevedo e Ruth Escobar.

Outra preciosidade armazenada é o impresso de O Ovo, espetáculo que inaugurou em 1964 o Teatro Aliança Francesa.

Parentêses: tendo posteriormente perdido este exemplar, por um desses acasos encontrou outro (ou seria o mesmo?) à venda num sebo da cidade, ao qual pagou dois reais no dia 13 de janeiro de 2011.

Claro que conteúdo teatral tão vasto e meticuloso chamou a atenção da Editora Giostri, responsável por uma série de lançamentos dedicados à dramaturgia nacional.

Ela propôs uma versão literária da dissertação acadêmica que Cetra finalizara em 2012, sobre sua odisséia pela cena teatral paulistana.

Daí surgiu o livro O Teatro Paulistano de 1964 a 2014 – Memórias de um Espectador, que documenta parte significativa da produção teatral de São Paulo no decorrer desse período.

Pelas suas 234 páginas são relacionadas 230 peças, objetos de breves ou extensos comentários e impressões de acordo com o sentimento experimentado ao vê-las.  

No prefácio, Alexandre Mate, professor e pesquisador de teatro, anota que “de cena em cena, Cetra nos apresenta geografia, instituições, nomes e apreensões emocionais, o que nos faz conhecer logradouros, nomes de pessoas, espaços e circunstâncias.”

Panelaço no Oficina. O autor não se limitou a registrar apenas o que testemunhou em cima dos palcos.

Também menciona situações inusitadas presenciadas nas portas e saguões dos teatros.

Como a de ver sempre degustando um saquinho de pipocas a mãe da atriz Ruth Escobar, uma enérgica senhora portuguesa que organizava as filas e o fluxo do público às sessões produzidas pela filha.

Houve uma vez em que brigou com a bilheteira de O Rei da Vela (1967), que não queria conceder ingresso especial aos estudantes, entre os quais ele.

A querela resultou num panelaço em frente ao Teatro Oficina.

“O ambiente estava tenso até que o Zé Celso apareceu e, num gesto demagógico, porque possivelmente partira dele o pedido para a suspensão do desconto, disponibilizou meia entrada, sob os aplausos da estudantada”, diverte-se Cetra, hoje Mestre em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Unesp.

Mais um curioso episódio se deu no show político Opinião (1965), com uma ainda novata Maria Bethânia como estrela, em substituição à Nara Leão, a protagonista na versão carioca.

Ao pisar o hall do Teatro Ruth Escobar, observou um rapaz magrelo e de cabelo comprido sentado na escadaria.

“Eu não sabia que aquele sujeito tímido e meio bicho grilo era o irmão dela, Caetano Veloso, prestes a estourar na MPB”, revela.

Dez vezes no Cais. Com tantas peças na bagagem, algumas conquistaram para sempre seu coração.

De uma lista das 28 melhores da sua vida, identificadas com asteriscos no livro, destaca cinco: Arena Conta Zumbi (1965), Apareceu a Margarida (1974), Paraiso Zona Norte (1989), Cacilda! (1998) e Cais ou Da Indiferença das Embarcações (2013).

Arena Conta Zumbi fez minha cabeça girar com as mil possibilidades de não só lutar pela liberdade como alterar o rumo das coisas.”

“Até hoje me lembro da voz, as inflexões, os gestos e as expressões de Marília Pêra em Apareceu a Margarida (foto à direita), potente metáfora sobre o regime militar brasileiro.”

“Não me esqueço em Paraiso Zona Norte da entrada da atriz Flávia Pucci, como Zulmira, quase flutuando, com um chapéu estranho, um guarda chuva aberto, o rosto muito maquiado de branco, o gestual descontínuo.”

“Em Cacilda!, Zé Celso apresentou fatos da vida da grande  Cacilda Becker, numa mistura alucinante de personagens e pessoas reais.”

 “Cais (foto abaixo), de Kiko Marques, é a primeira grande obra prima do teatro brasileiro deste século.”

Esta última, por sinal, ele assistiu dez vezes, seu recorde pessoal.

“Ao longo da existência da montagem acompanhei a atriz Virgínia Buckowski grávida de oito meses, sua ausência temporária do elenco e o retorno, já com a pequenina Anita no bastidor, pela primeira vez num teatro.”

Loucura e amnésia. O que mudou no universo teatral de São Paulo nesse meio século?

Na esfera comportamental, ele percebe que o público está mais mal educado.

Se antes eram as velhinhas resmungonas, hoje são aqueles que não desligam o celular ou que permanecem o tempo inteiro navegando na internet durante a representação.

“Para mim, o teatro é um lugar sagrado que não pode ser violado e vilipendiado”, ensina.

Esteticamente, constatou rupturas.

Até meados da década de 1970, era uma corrente artística combativa, rica em ideias, centro de convergência da oposição ao regime militar aqui instalado.

Depois do fim do autoritarismo, certa apatia criativa pautou o cenário teatral.

“Diziam que muitas obras sairiam das gavetas, mas poucas foram encenadas e o que ganhou vida não resultou grande coisa”, avalia.

Foi com o movimento Arte Contra a Barbárie, promovido por grupos teatrais, que a arte renasceu com força a partir do ano 2.000.

“Nossa produção cênica tem qualidade, com pesquisa de linguagem, companhias de fôlego, diretores ousados e bons dramaturgos”, mensura.

“Além disso, a revitalização do gênero musical fomentou a formação de atores que sabem cantar, interpretar e dançar.”

Como espectador, acredita ter aprimorado o seu olhar.

“Eu encarava o teatro de forma romântica e conseguia acompanhar numa boa a temporada”, conta.

Hoje, maduro e tarimbado, se considera mais crítico e exigente.

“E aflito por não conseguir dar conta da nossa superlotada agenda teatral”, emenda, rindo.

“Se antigamente eram quinze espetáculos simultaneamente em cartaz que ocupavam poucas salas numa mesma região, hoje são dezenas ao mesmo tempo e espalhados pela capital inteira”, compara.

No último capítulo, Cetra descreve como se surpreendeu recentemente ao perceber que alguns programas de peças estavam fora do lugar original na estante, sem que alguém tivesse tido acesso ao seu sistematizado arquivo.

Se não tinha sido a filha, a faxineira ou, quem sabe, um ladrão amante de dramas, comédias e tragédias, estaria ele com amnésia ou enveredado pela loucura?

O desfecho da crônica é outra saborosa iguaria oferecida aos leitores.

    

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