EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Cinema: Nós

O filme inicia com um quebra-cabeças de informações aparentemente desconexas. Abre com um lettering afirmando que existem milhares de milhas de túneis sob os Estados Unidos, muitos dos quais não têm “nenhum propósito conhecido”. Corta! Então vemos um parque de diversões à beira-mar em Santa Cruz, em 1986. Enquanto o pai está distraído em um estande de jogo, vemos a sua pequena filha andando pelo parque até descer na praia e encontrar a instalação chamada Floresta de Merlin com uma exortação na placa: “Encontre-se!”.

A menina entra numa espécie de labirinto de espelhos, assoviando nervosamente uma música, até ouvir alguém assoviando a mesma melodia. Ela para diante de um espelho e descobre que há algo mais além do seu reflexo... 

Mais um corte. A câmera enquadra um coelho branco e vai afastando. Em seguida vislumbramos uma vasta parede de gaiolas, cada um com o seu próprio espécime leporino.

Outro corte. Agora estamos na atualidade e acompanhamos a próspera família Wilson que vai para Santa Cruz passar as férias na sua casa de praia. Essa sequência é quebrada por um flashback de 1986 quando aquela menina que estava perdida diante dos espelhos retornou para casa e está muda, em estado de choque. Esta é a conexão com Adelaide Wilson (Lupita Nyong’o) que no passado era aquela menina que passou por alguma estranha experiência, e que agora é uma mãe nervosa. Compreensível, porque ela está voltando para as proximidades daquele parque que foi a cena do trauma de 30 anos atrás.

Ela é casada com Gabe Wilson (Winston Duke), com seus filhos Zora (Shahadi Joseph) e Jason (Evan Alex). A primeira crítica social é que vemos uma família negra de classe média cujo pai mantém uma atitude competitiva e consumista velada com seus amigos ricos brancos, os Tylers: Kitty (Elizabeth Moss) e Josh (Tim Heidecker), que também estão na sua casa de férias nas proximidades.

Tudo muda nessa vida afluente quando, à noite, na garagem da casa dos Wilsons, surgem duplicatas exatas (porém, com aparências sinistras) querendo forçar a entrada. Eles têm algum propósito, vestidos de macacão vermelho (ecos de série A Casa de Papel?) e empunhando tesouras ameaçadoras. Certamente, para perfurar suas vítimas homólogas.

A certa altura, a duplicata de Adelaide (que é a líder da invasão) chama aquele evento de “desligamento”. Mais enigmas que o espectador terá que desvendar.

Aos poucos, vamos percebendo que aquele não é um acontecimento isolado. Os Tylers também estão sendo vítimas das suas próprias duplicatas que invadem sua casa, produzindo uma chacina.

Há algum tipo de evento em escala aparentemente global, no qual duplicatas estão procurando seus “originais” para buscar justiça ou simplesmente vingança, empunhando tesouras e um olhar ensandecido...

E descobriremos que esse evento apocalíptico de alguma forma está conectado com aquela cena traumática do estranho labirinto de espelhos de 1986.

O filme concilia crítica social com mitologia. O complexo mítico está no misterioso parque de diversões, cujo simbolismo é potencializado pelo labirinto de espelhos. Ao longo da história o espelho criou ao seu redor uma constelação de simbolismos: reflexo da própria alma, passagem para outros mundos, indutor de visões do futuro, má sorte ao ser quebrado ou, como sugere no Feng Shui, ao usá-lo em ambientes para criar a impressão visual de expansão no qual energias da casa são expandidas e redirecionadas.

Mas também há um imaginário maligno: a contemplação de uma réplica de si mesmo sempre foi considerada um evento misterioso, muitas vezes o próprio prenúncio da morte.

Mas Jordan Peele vai além: aqui o duplo transforma-se em dualidade: os duplos seriam como nossas sombras, no sentido da psicologia analítica de Jung – o lado escuro da psique, nossos sentimentos mais primitivos e egoístas. Os duplos retornam, porque foram esquecidos nos túneis de algum submundo.

Mas Peele encaixa nesse simbolismo arquetípico a crítica dos EUA atuais: a dualidade política e de crenças no país da Era Trump. Como afirma o diretor, “pode ser o ‘nós’ a família, o ‘nós’ a cidade, o ‘nós’ o país ou o ‘nós’ a humanidade”. Como responde o duplo de Adelaide ao ser indagada “quem são vocês?”. “Somos americanos!”, responde o duplo com um olhar sinistro.

O quebra-cabeças ganha sentido somente ao final, quando Peele dá pleno propósito demiúrgico ao parque de diversões, na melhor tradição gnóstica: os duplos vivendo em um mundo paralelo e subterrâneo como fossem nossas marionetes para controlar os “originais” que vivem na superfície.

Na melhor tradição gnóstica de Dr. Caligari: parques de diversões controlados por demiurgos com finalidades nada boas. Daí o misto de fascínio e terror por espelhos, duplos, autômatos, marionetes, replicantes ou robôs: o surgimento do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus.

Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil. Além disso, as marionetes se metamorfosearam, na modernidade, em figuras como robôs, ciborgues, androides e, mais recentemente, na hibridação do corpo humano.

Mas o longa joga com o terror fundamental: o questionamento das nossas identidades ou a sua própria perda. Situação aterrorizante, já que a única coisa que podemos contar nesse universo é com as nossas próprias consciências.

(Wilson Roberto Vieira Ferreira, do site Cinema Secreto: Cinegnose)

(Foto Divulgação)

 

Nós

Título Original: Us (Estados Unidos/China/Japão, 2019)

Gênero: Suspense, 116 min

Diretor: Jordan Peele

Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Evan Alex, Shahadi Joseph e outros.

Estreou: 21/3/2019

 

Veja trailer do filme:

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