Cinema: O Farol

Desconcertante e tensa, a história transcorre no final do século XIX e tem como cenário uma pequena e remota ilha povoada de gaivotas. É um thriller noir com fotografia granulada em preto e branco, aspirada do expressionismo alemão e dos longas de terror dos anos 1930, e uma arquitetura de som pontuada pelo ruído intimidante de uma buzina de nevoeiro. Dois sujeitos enlouquecem lentamente neste território rochoso isolado da civilização. Um deles, o velho faroleiro Thomas (Willem Dafoe), chega a alertar o jovem aprendiz Ephraim (Robert Pattinson) para não matar uma gaivota que o importuna, “porque elas são espíritos de marinheiros mortos.” 

Estamos em um ambiente claustrofóbico, tanto no sentido geográfico quanto psicológico, e o cineasta americano Robert Eggers (A Bruxa) submete estas duas criaturas a uma convivência necessária, envolvidos no cotidiano de cuidar de um farol que parece conter um mistério. Ambos compartilham uma acanhada cabana. Thomas oscila entre o silêncio e a tagarelice, tem atitudes grosseiras, é agressivo e beberrão, como se encarnasse a figura do velho do mar. Um tipo esquisito, que mantém a rotina de se confinar nu dentro do espaço do farol – objeto fálico? - e se entregar ao prazer sexual. Ephraim é meio introspectivo, mostra estar incomodado com o tratamento dispensado pelo superior e oculta alguns segredos do passado.

Mesmo se quisessem, e há um momento em que um deles tenta desesperadamente, não conseguiriam sair de barco do local devido às intempéries climáticas. Ou seja, encontram-se na circunstância de ter de lidar um com o outro e com seus demônios pessoais. A rota de colisão é previsível, ainda que postergada pelo consumo de álcool, e a linha que separa a sanidade da loucura torna-se cada vez mais embaçada. Insinua-se uma voltagem sexual entre eles – em uma passagem descontraída, quase se beijam. Logo uma atmosfera de beligerância mútua vai se formando, porque o novato quer conhecer de perto o enigmático farol e o colega não o deixa se aproximar, entupindo-o de trabalhos e tarefas. “O farol é minha mulher”, imagina o veterano. Pouco a pouco os papéis se invertem, subvertendo a dinâmica de poder inicial.

O espectador atento irá notar que a natureza assume a função de uma espécie de terceira personagem. A chuva, as ondas do mar, o vento, as rochas parecem ganhar existência própria e se intrometem na alma da ilhota e de seus dois ocupantes. Até as gaivotas adquirem presença ativa e ameaçadora - num acesso de fúria, um dos homens esmigalha uma ave e, na sequência, como se o universo se vingasse da patifaria humana, um sinalizador gira insanamente indicando a proximidade de uma tempestade. Várias cenas são marcantes. Em determinada sequência, um deles se depara com uma sereia, que com frequência irrompia em seus sonhos e devaneios, e quase alucina. Em outra, alguém se masturba enquanto carrega em uma das mãos uma diminuta sereia de argila.   

Trata-se de uma produção fértil em significados, articulada a partir de lendas marítimas, conceitos psicanalíticos, contos de escritor americano H. P. Lovercraft e temas explorados em quadros pelo pintor espanhol Goya. Um longa-metragem possível de ser dissecado pela via da mitologia grega. Thomas simbolizaria o deus marinho Proteu, o ancião de fisionomia severa capaz de se metamorfosear – em uma luta renhida com Ephraim, quando de seu corpo nascem tentáculos, ele invoca uma maldição dos mares. Representação da caixa de Pandora, o antigo farol está ali para cumprir a sina de liberar os males que afligem a humanidade, como a loucura e a violência. A luz que irradia exprime o fogo que, segundo a lenda, Prometeu teria roubado do Olimpo para levá-lo à Terra. Punido por Zeus pela infâmia, ele foi acorrentado no alto do monte Cáucaso e passou a ser diariamente bicado por uma águia em ação contínua de comer o seu fígado. Nesta obra singular e sombria, Ephraim reedita a tragédia.

(Edgar Olimpio de Souza - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

O Farol

Título Original: The Lighthouse (Estados Unidos, 2019)

Gênero: Thriller noir, 110 min

Direção: Robert Eggers

Elenco: Willem Dafoe e Robert Pattinson

Estreou: 02/01/2020

 

Veja trailer do filme:

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