Músicos em pé de guerra

A classe musical anda tensa, dividida em fronts de luta, parte dela sentindo-se órfã de representação. Tudo por conta da controvertida atuação da OMB – Ordem dos Músicos do Brasil, criada em 1960 com o intuito de regular a profissão de músico no Brasil. Há quem veja nesta autarquia pública federal um comportamento policialesco de milícia, não condizente com a lei 3.857 que a criou, e reivindicam uma ampla e irrestrita reformulação da entidade. Já os que a defendem, alegam que a realidade profissional dos músicos estaria mais precária não fosse a fiscalização empreendida pelo órgão. Poucas vezes o segmento esteve tão fragmentado e pulverizado como agora.   

A queixa básica daqueles que não se vêem representados pelo órgão é a de que a OMB tem se destacado ao longo dessas cinco décadas por impor de forma autoritária penalidades e restrições a quem não tem vínculos com ela. Para exercer profissionalmente seu ofício, o músico é obrigado a inscrever-se na entidade, submeter-se a um exame prático, que muitos julgam inócuo, pagar anuidade e daí receber uma carteirinha, com peso de licença para trabalhar.  

O cenário teria piorado com uma portaria de 1986 baixada pelo então Ministro do Trabalho Almir Pazzianoto, que criou a Nota Contratual como forma de resguardar os direitos previdenciários dos músicos. O problema, na visão dos críticos, é que a OMB utiliza-se deste documento para controlar se o músico está ou não filiado ao órgão e em dia com a tesouraria. Na prática, o que deveria servir para garantir aposentadoria digna, virou água com a constatação de que a maioria da classe sobrevive na informalidade.

Uma recente decisão judicial atirou a OMB contra a parede. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região de São Carlos proibiu a entidade de fiscalizar os músicos e de exigir a inscrição no órgão, criando jurisprudência para estender a decisão para o País inteiro. Segundo a resolução, a lei que originou a OMB nunca exigiu o registro de todo e qualquer músico para o exercício da profissão, mas apenas daqueles com formação acadêmica, que estão sujeitos ao controle e fiscalização do Ministério da Educação. Por conta disso, estaria crescendo bastante o número de liminares de músicos profissionais contra a obrigatoriedade de vinculação ao órgão.

Não bastasse a sentença contrária, a autarquia tem sido fustigada por outras acusações graves. Uma delas é a de que teria se tornado um centro de desvios financeiros e corrupção, uma agência de controle e extorsão. O ex-presidente Wilson Sândoli, nomeado interventor da entidade pelo Regime Militar, é acusado de desviar R$ 1,4 milhão, comprar carros blindados e armas, contrair empréstimos e pagar despesas pessoais com recursos dos contribuintes músicos. Tantos escândalos acumulados durante a sua controvertida gestão (1966-2008) provocaram a sua substituição no cargo pelo então vice-presidente e maestro Roberto Bueno.   

Para parte da classe musical, a OMB é uma espécie de caixa preta que nunca foi aberta. A entidade é acusada de não prestar contas do dinheiro arrecadado nos shows internacionais que acontecem no Brasil – a Lei 3.857 prevê a cobrança de um imposto no valor de 10% dos cachês das atrações que vêm do Exterior. Sândoli também teria ateado mais fogo ainda quando dividiu a classe em duas categorias - o Músico Prático, de aprendizado autodidata, e o Músico Profissional, de formação acadêmica.

Na avaliação dos defensores de uma revisão sem tréguas do órgão, a OMB deveria tratar da informalidade, combater a pirataria e promover a educação musical. “A cena musical do país mudou bastante a partir do advento da revolução digital, gerando mudanças estruturais”, escreveu o músico Ricardo Peres no site Vermelho, do PC do B. “Temos que discutir novas regras nas áreas da cultura, da comunicação e da política. A nova cena pede por uma nova estratégia de representação dos músicos profissionais.”

Igual a motoboy. Alvo de tantos ataques, a OMB decidiu contra-atacar. O novo presidente Roberto Bueno (primeira foto abaixo), que assumiu no final de 2008, lembra que durante os sete anos em que ocupou a vice-presidência da autarquia, esteve de mãos presas porque o cargo não tinha poder de decisão. Ele rebate as críticas de que o órgão continua estagnado em sua gestão. “Informatizamos a entidade, criamos um site (www.ombsp.org.br), lançamos uma revista mensal, organizamos um plano de saúde para a categoria, damos aulas para músicos deficientes visuais e abrimos uma série de cursos gratuitos”, enumera.

A lista dos benefícios não pararia por aí. A OMB engajou-se em dois projetos sociais, ensinando música para crianças carentes e moradores de rua. Uma das principais metas agora é inaugurar uma Casa do Músico para atender profissionais em situação financeira difícil. “Também enviamos um projeto de lei para a Assembléia Legislativa de São Paulo propondo a isenção de impostos de todas as casas que contratarem músicos profissionais com algum tipo de deficiência física”, completa.

Bueno não poupa das críticas aqueles que estariam se aproveitando da situação. Entre eles, o SIMPROIND – Sindicato dos Músicos Profissionais Independentes, que criou uma carteirinha para os músicos independentes, e o deputado estadual Carlos Giannazi, autor de alguns projetos de lei para a área. “Esse tal deputado está a favor dos empresários e do capital e não da classe dos músicos”, fustiga. “Se o ex-Governador Serra não tivesse vetado um deles, que desobrigava o músico de apresentar a Nota Contratual, os profissionais seriam jogados na lama da ilegalidade”, alfineta.

Até mesmo o vínculo obrigatório com OMB, Bueno vê como natural. “Para atuar como corretor de imóveis, o camarada não tem que se inscrever no CRECI? O motoboy não necessita de carteirinha? Assim como o médico e o engenheiro, que também precisam. Então por que seria diferente com o músico?”, questiona.

Atualmente, segundo Bueno, a OMB abriga 63 mil inscritos, dos quais metade, os acima de 65 anos, está isenta do pagamento de 120 reais anuais. “Quando assumi existiam apenas quatro mil vinculados, isso mostra que a classe percebeu que nossa administração é transparente”, acredita o presidente, que critica os músicos amadores que tocam por hobby em bares nos fins-de-semana, ocupando o espaço de profissionais formados em universidades e conservatórios musicais.

“A OMB é um sonho realizado de nomes como Villa Lobos, Pixinguinha e Eleazar de Carvalho e somos radicais no que diz respeito à proteção do segmento”, assinala Bueno. Hoje a entidade dispõe de 27 delegacias regionais para fiscalizar o exercício da profissão. “Os músicos de Ilha Solteira solicitaram uma delegacia local porque a cidade vive um estado de prostituição musical”, revela. “Quem critica a gente tem um tipo de discurso ultrapassado, está olhando para trás.”    

Pressão na ordem. O guitarrista Paulo Santana, presidente do SIMPROIND, discorda desse raciocínio. Lembra que a OMB nasceu para banir a idéia de que músico é vagabundo e profissionalizar a atividade, mas que tal atribuição teria sido deturpada ao longo do tempo. “O órgão, que deveria cuidar da previdência dos músicos, virou instrumento de cerceamento e passou a assumir o papel de cartório de arrecadação financeira, limitando-se a fiscalizar quem tem a tal carteirinha”, cutuca Santana. “Aquele que não paga a anuidade, e deixa de ter o documento, acaba sendo proibido de trabalhar.”

Tanto é verdade, afirma Santana, que nos últimos dez anos a classe abriu fóruns de discussão na internet para alardear seu inconformismo e propor uma pauta de reivindicações. “A OMB não é uma entidade representativa do segmento e tem falhado na hora de registrar a Nota Contratual. Isso significa que o INSS dos músicos não está sendo recolhido conforme a lei, empurrando a classe à míngua. Você conhece quantos músicos aposentados?”, desafia.

Com o intuito de oferecer uma alternativa à carteirinha e à Nota Contratual, o SIMPROIND criou o PR-PIS, programa on-line de registro profissional, com intermediação sindical, que junta nota fiscal e recolhimento do INSS na fonte, a contar dos contratos realizados a partir de janeiro desse ano. “Eles alegam que precisam de recursos financeiros para se manter, mas e o recolhimento dos 10% do valor dos cachês das atrações internacionais? Só um show da Madonna daria para pagar alguns meses de salário dos funcionários”, observa.

Contrária ao vínculo obrigatório dos músicos à OMB a APBSESP – Associação dos Profissionais da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, que reúne os oitenta músicos da banda e o seu corpo técnico, obteve uma liminar em 1996 contra a cobrança da anuidade. “A OMB nunca se preocupou com contrato de trabalho e direitos trabalhistas, só se limitava a cobrar de forma truculenta e oferecer colônia de férias na Praia Grande”, conta o trompetista Sílvio Flórido, presidente da associação. “Lá na sede da ordem, a pressão para pagar a anuidade era insuportável, ameaçavam não carimbar a carteirinha e sem ela não podíamos trabalhar”, recorda-se. “Podemos até provar que a OMB não está agindo segundo os princípios de sua criação, mas também não concordamos com aqueles que querem por abaixo toda a estrutura montada”, completa.

Para o maestro Amilson Godoy (foto ao lado), há quinze anos à frente do Grupo Sinfônico Arte Viva, orquestra que traz a estética da música erudita para a música popular, a OMB precisa de reformulação tanto quanto outros órgãos que representam os músicos, para contemplar outras demandas também. “Como ninguém se preparou para a evolução tecnológica, o nosso mercado de trabalho encolheu e precisamos reverter isso. Estamos sendo substituídos por playbacks e gravações”, alerta ele, sugerindo que se destinasse aos músicos um percentual pela utilização do playback e participação nos direitos conexos de música ao vivo.

Presidente do SINDIMUSPI – Sindicato dos Músicos Profissionais e Intérpretes do Município de São Paulo, o baixista e compositor Mário Henrique de Oliveira, o Marinho TP, conta que há mais de três décadas briga contra a má administração e o descalabro financeiro na OMB, que considera uma torre de babel. Ele faz uma radiografia nada complacente do estado de coisas que acomete a categoria. “Eu sei de um empresário, melhor dizendo, um cafetão de músicos, que trabalha com oito bandas de forró e não recolhe nada. Também conheço um grupo de pagode, com oito integrantes no palco, que recebe R$ 100 reais por uma hora e meia de apresentação. O empresário deles passa literalmente por cima da lei. Então como fica se um dos pagodeiros adoece?”, questiona.

O problema, em sua avaliação, não seria mais fazer vistas grossas para a ilegalidade, mas não fazer vista alguma. Uma das primeiras medidas para readequar a OMB seria acabar com a diferença entre músico prático e acadêmico. A autarquia surgiu para defender o profissional de formação acadêmica, que só poderá exercer a profissão depois de regularmente registrado no Ministério da Educação e Cultura e no Conselho Regional dos Músicos. “Mas ao criar a categoria de músico prático para fazer caixa, o órgão acabou contrariando a lei”, sentencia Marinho.

Violãozinho sem vergonha. Outra mudança necessária seria definir as funções originais de cada entidade que atua no segmento. “A OMB deveria fiscalizar o exercício da profissão, cabendo ao sindicato da classe averiguar as condições de trabalho”, ensina Marinho. O mais urgente, no entanto, seria fazer valer o artigo 66 da Lei 3857, que estabelece obrigações e deveres do contratante no tocante ao recolhimento da previdência social. “Como pouca gente cumpre a lei, o músico que insiste na legalidade é preterido por outro que se submete à informalidade para sobreviver”, assinala.  

Coordenador da Frente Parlamentar em Defesa dos Músicos e Compositores do Estado de São Paulo, o deputado estadual Carlos Giannazi (foto ao lado) engajou-se na luta dos músicos contra as ações da OMB e pela reestruturação da política da entidade. Ele assina o projeto de lei 214/09, que anula a exigência de comprovação de inscrição na OMB, e o PL 223/09, que declara o livre exercício da profissão de músico em todo o território do Estado de São Paulo. Outro projeto de lei seu, vetado pelo Governador Serra, mas que entrará novamente na pauta legislativa nesse ano, proíbe a OMB de fiscalizar a Nota Contratual, uma tarefa que caberia ao Ministério do Trabalho. 

“Queremos que os músicos paulistas não sejam mais fiscalizados pela OMB nem obrigados a se vincularem ao órgão para exercerem a profissão”, anota o parlamentar, que também entrou com representação no Ministério Público Federal solicitando que o Supremo Tribunal Federal anule vinte artigos da lei que criou a autarquia. Giannazi disponibilizou o Disque-Denúncia na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (fone: 11. 3886-6686) para receber todas as reclamações feitas por músicos, professores de música, compositores e escolas que se sentirem vítimas do assédio da OMB.

O parlamentar também quer revigorar e potencializar a atividade com outras duas medidas. Uma delas, o PL 940/09, institui incentivo fiscal para bares, restaurantes, casas noturnas e condomínios de shoppings que realizem eventos culturais com música ao vivo. Já o PL 842/08 propõe educação musical por meio da inclusão aulas de música no currículo das escolas públicas de Educação Básica do Estado de São Paulo.

Na Câmara Federal tramita o PL 6303/09, assinado pelo deputado federal Zequinha Marinho, que também proíbe a exigência de inscrição na OMB para a prática da profissão. O proponente argumenta que a obrigatoriedade do vínculo afronta a Constituição Federal, que estabelece o livre exercício profissional. “Apesar de a jurisprudência registrar que o músico não é obrigado a se inscrever na entidade, é comum observarmos os profissionais e os contratantes receberem multa por exercício ilegal da atividade”, justifica.    

Na classe musical, a discussão parece não ter fim. No badalado blog do economista Luis Nassif, que alguns meses atrás publicou matéria a respeito, o músico internauta Toninho Cruz elogiou a OMB, “apesar de todos os defeitos da entidade”, e emendou que o cenário seria pior se ela não existisse. “A regulamentação da profissão é necessária porque hoje observamos várias pessoas tocando um violãozinho sem vergonha se dizendo músico, tirando o emprego de quem estudou”, escreveu ele, que atua há mais de quarenta anos na área.

O músico Antonio Rodrigues rebateu o colega, afirmando que uma classe profissional que é subjugada há anos por um mesmo grupo, perde a voz na hora de reivindicar alguma coisa. Ele afirma que quem não tem interesse na participação dos músicos é a própria OMB. “Nós tentamos inúmeras vezes mudar a diretoria, mas sem sucesso. A OMB deveria ser um órgão facultativo, só vinculando-se aquele que tem vontade de ter carteirinha de artista”. Rodrigues acredita que caberia ao público diferenciar o profissional do amador. "Ninguém tem o direito de afirmar quem é ou não um artista."

Com nove anos de estrada, a banda Som+Ativa (foto lao lado), que se apresenta em bares da Vila Madalena, receia que o debate, importante e fundamental para a classe dos músicos, se perca em meio aos interesses particulares de cada ator nesse processo. Os quatro integrantes defendem que todos os esforços feitos para regulamentar, organizar e proteger a atividade, venha de onde vier, serão sempre bem vindos. Como assinala com ênfase o guitarrista Ricardo Kaki, “o que não podemos de jeito algum é desunir o segmento, para não corrermos o risco de implodir o mercado musical.” 

 

 

(Edgar Olimpio de Souza - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto da página inicial: Brand New Band / Por Marcos Corazza)    

    

 

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