12 Homens e uma Sentença

Em uma época em que todo mundo entrega-se ao exercício de julgar moralmente todo mundo, a peça de Reginald Rose é um estudo minucioso do comportamento de grupo. Mais ainda: de como um mesmo fato pode admitir ângulos e verdades divergentes a partir das diferenças culturais e histórias de vida de cada um. Neste drama de tribunal de tom humanista, doze jurados devem decidir se um jovem estrangeiro de dezesseis anos assassinou ou não o próprio pai. Se culpado, será executado na cadeira elétrica. O veredicto precisa ser unânime – na justiça brasileira, basta apenas obter a maioria dos votos. Por conta disso, a carga dramática da decisão é absurdamente pesada. Afinal, alguém pode perder o direito à vida se uma injustiça for cometida. Onze estão convictos de que o garoto cometeu o ato. O jurado número 8, porém, quer discutir mais. Decidido a analisar novamente os eventos, ele se depara com a má vontade dos demais, famintos e ansiosos para irem embora. É um início de alta voltagem. Áspera e exasperante, a trama já foi transposta para o cinema (1957), na estréia na direção de Sidney Lumet, e agora ganha a primeira montagem teatral no Brasil pelas mãos do inspirado Grupo Tapa. Poucos diretores como Eduardo Tolentino cultivam o hábito de encenar peças que dialogam com a atualidade, que reflitam e espelham a sociedade de hoje. No extenso currículo da trupe, nada é levado aos palcos por acaso.   

O texto chega a ser contundente, em especial num tempo em que a conveniência avilta o consagrado princípio jurídico da presunção da inocência. Enquanto o jurado dissidente tenta convencer os outros colegas, toma forma e feição a característica individual de  cada membro do júri. Ou seja, o estilo e a trajetória de vida, a condição social, a ocupação profissional, a idade, os traços de personalidade e temperamento. (*) Há o bancário hesitante e humilde (Ricardo Dantas), o frio e autoconfiante corretor de ações (Oswaldo Mendes), o operário obtuso e influenciável (Marcelo Pacífico), o vendedor extrovertido e superficial (André Garolli), o publicitário sem nenhum ponto-de-vista (Ivo Muller), o relojoeiro imigrante que fala com sotaque (Eduardo Semerjian), o comedido e metódico presidente do júri (Brian Penido), o sujeito que cresceu em uma favela (Augusto César) e assim por diante.  A peça se alimenta desses choques e embates inevitáveis. O jurado 3 (Genézio de Barros), por exemplo, está debilitado emocionalmente pelo desdém do filho, o que influencia sua decisão. Espécie de antagonista do sereno e lúcido jurado 8 (Norival Rizzo), ele é amargo e passa o tempo todo berrando e inflamado com os outros. Será o último a ser persuadido, numa cena na qual revela uma vulnerabilidade surpreendente. O público irá observar atônito que o réu é visto como culpado mais por uma questão de preconceito, crenças e idéias pré-concebidas.

Em suma, quase todos ali solaparam a objetividade e a racionalidade, substituídas por ressentimentos, rancores e vinganças pessoais. Mesmo diante de um quadro aparentemente imutável, aos poucos o jurado 8 abala a convicção do grupo e espalha dúvidas. Chega ao detalhe de cronometrar o tempo e imitar os passos de uma testemunha que alega ter ouvido o crime e visto o menino escapulindo.  A arma do crime, uma faca dobrável, é espetada na mesa. O primeiro a concordar com ele é o jurado 9 (José Renato), o mais veterano e perspicaz, que afirma não haver provas suficientes para a condenação.  Por sinal, ele vai protagonizar um dos momentos emblemáticos do espetáculo, ao levantar-se da mesa, seguido um a um pelos demais, inconformado com o discurso racista e reacionário do jurado 10 (Riba Carlovich). É interessante observar como o placar vai sendo virado na medida em que as dúvidas são levantadas e fundamentadas, produzindo revisão das posições iniciais. Efetivamente, é possível existir um abismo entre o que se viu e o que se pensou ver. O processo, claro, não será levado sem conflitos e paixões exacerbadas. Trata-se de uma exaustiva guerra de nervos. O que está em jogo não é mais a solução do caso, mas a decisão de se condenar um jovem à morte.

Na envolvente e poderosa encenação do Tapa, que enfrenta um texto adaptado num sofisticado registro naturalista, a tensão é acirrada paulatinamente. Com o agravante de que o ambiente é uma pequena sala de um tribunal, em um dia de verão infernal. O calor excessivo e a falta de ventilação tonificam a atmosfera asfixiante e claustrofóbica. A platéia é tragada pela trama, pela fricção dos diálogos, pela dinâmica das mudanças, pela linguagem corporal e não pela ação física ou o desvendamento do crime. Deixa-se seduzir pelo passo a passo, pelo fato alavancado, pelo dado exposto, pela prova autopsiada. É uma encenação que instiga o espectador a degustar diferentes aspectos do caso. Numa direção em que o estilo deve ser deixado de lado, Tolentino desenha marcações que funcionam não só para acentuar o clima beligerante instaurado na arena de discussão como servem para transmitir a sensação de perplexidade de um júri atormentado pela insegurança. Dispondo tão somente de uma mesa e doze cadeiras, consegue prender a atenção do público de maneira absoluta. Trata-se de um tipo de trabalho que presta tributo à arte do ator e dispensa ilusionismos e grandes recursos cênicos.

O talentoso elenco masculino reunido é capaz de atribuir magnitude a figuras muito diferentes, valorizar e tirar proveito da atualidade e pertinência da peça. Em cena, eles fumam nervosamente, transpiram, trocam insultos, perdem a compostura, se enfurecem, andam estressados de um lado ao outro. Entregam-se com paixão e eletricidade aos seus personagens. Não há um destaque individual, cada intérprete deixa a sua marca e sua personalidade. São performances arrebatadoras, que abrilhantam e concedem coesão ao conjunto. Um espetáculo de construção narrativa precisa, reverente a um texto que celebra um tipo de ideal cada vez mais vilipendiado nos tempos cínicos de hoje.

(Edgar Olimpio de Souza - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Zineb Benchekchou)

 (*) Na atual temporada ocorreram mudanças no elenco

 

Avaliação: Ótimo

 

12 Homens e uma Sentença

Texto: Reginald Rose

Direção: Eduardo Tolentino                                                                                                      

Elenco: Norival Rizzo, ZéCarlos Machado, Brian Penido, Ivo Muller e outros                                                                  

Teatro Viradalata (Rua Apinajés, 1.387, Perdizes. Fone: 99665-3986). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 60. Até 27 de novembro.

Estreou: 19/11/2010

 

 

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