EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Mais uma vez o Sobrevento ousou e acertou. O novo trabalho da companhia, que tem quase três décadas de existência, é tocante e comovente. Vale-se de objetos que ganham vida, e se relacionam com atores, para falar de uma época marcada pela exaltação do individualismo. Os personagens da peça são seres solitários, transitam no vácuo, meio que sem rumo. Por vezes encontram-se confinados em espaços exíguos, como uma casa de papelão ou uma oficina de alfaiataria. Estão submetidos a ações árduas e fatigantes, como caminhar pisando apenas em pares de sapatos enfileirados ou carregar uma trouxa de malas, saltando de cadeira em cadeira, até perceber que todo o esforço resultou em nada. Há um esgotamento implícito em seus movimentos, de se tentar conseguir alguma coisa que não se sabe bem o que seja. Eles se revelam desesperados para sair do lugar, ora tentando alcançar um trem que passa ora pedindo carona para veículos que nunca param. Alguns só têm como companheiros um pássaro na gaiola ou um peixe no aquário. Outros desejam regressar a um ponto que perderam e, lá estando, continuam a sina solitária. Ou seja, as situações escancaram níveis variados de conflitos pessoais, desajustes em relação ao entorno, uma sensação terrível de ausência. São tipos perdidos em um cotidiano que aboliu o espaço para o sonho.   

Visualmente sugestivas, como se fossem instalações de artes plásticas, as quinze cenas emaranhadas na montagem assemelham-se a campos de prova e decisão. Seguem a lógica de um espetáculo circense, dotado de números de equilíbrio e contorcionismo que o público acompanha com ansiedade e apreensão. Afinal, as figuras ali reunidas vivem numa espécie de corda bamba, enfrentando o tempo todo estágios que as levam cada vez mais um degrau abaixo. A impressão é a de que se debatem em areia movediça e precisam escapar urgentemente dessa armadilha. Estão procurando algum lugar? Alguém? A própria identidade? Um sentimento de culpa cristã pesa sobre eles. Uma bailarina (Sueli Andrade) rodopia e ameaça se perder em moto contínuo. Uma menina aflita (Liana Yuri) perde o fôlego na tentativa de salvar um peixe. Um homem (Maurício Santana) se esforça para conquistar uma jovem, oferecendo jantar regado a vinho, viagem a Paris e até a possibilidade de formarem uma família com muitos filhos. Uma mulher (Sandra Vargas) quer levar todos os seus pertences numa mala e acaba perdendo a viagem. Um moço (Daniel Viana) exerce atividade tão penosa que, lentamente, se transforma em animal.  

Interessante notar como os objetos, que ganham riqueza metafórica, são manipulados com destreza pela trupe, que deixou a função de narrador para assumir a de personagem. Um casaco de pele pendurado num manequim sinaliza a presença feminina. Uma mala é aberta e uma moça some dentro dela. Uma camisa jeans vira mar e traga um barquinho. Puxado por um sujeito, vagão de brinquedo adquire a dimensão de um imenso trem de passageiros. Uma pequena caixa de papelão, forrada de miniaturas como pingüim de geladeira, panelas e outros utensílios, serve para ilustrar o lar claustrofóbico de uma pessoa solitária, cujo corpo assume desproporcionalmente o espaço. Um alfaiate come borboletas em forma de papeis, como se fosse a derradeira refeição.

Despojadas das palavras, as micro narrativas evoluem de forma quase independentes. Os quadros transpiram variadas camadas de emoção. Podem tanto ser dramáticos como melancólicos, gerar ternura ou soar patéticas. Vistos em conjunto, aludem ao absurdo da existência. Não por acaso, o Sobrevento serviu-se do livro Amerika (1957), o romance inacabado de Kafka, para deslanchar seu olhar para o estado atual das relações humanas. Na trama, um rapaz alemão é expulso de casa pelos pais, após engravidar uma empregada doméstica. Enviado aos Estados Unidos, mergulha em uma sociedade que pouco compreende. Só vai encontrar uma fresta de salvação ao se deparar com um circo, quando vislumbra a oportunidade de se tornar um artista.

O que o Sobrevento busca expressar, para impulsionar esse conjunto de metáforas poéticas, é o grande tema da obra kafkiana, o processo de desumanização e coisificação do outro.  Não há uma história linear, com começo, meio e fim, mas apenas situações se sucedendo. O tom é meditativo. O público cumpre missão importante. Cabe a ele construir o seu enredo ou tirar suas próprias conclusões a partir da sua projeção e identificação com itens facilmente reconhecíveis, como árvores secas, carrinhos de brinquedo, casas de bonecas, capazes de ativar memórias do passado. Na peça, as imagens mais dizem do que mostram. Como na literatura do escritor tcheco, as situações desembrulhadas no espetáculo carregam doses de ironia e dor, com pitadas de sarcasmo. Para dar certo alívio existencial ao desconforto dos personagens, ao aparente beco sem saída, em seu desfecho a montagem abre um naco de esperança. Ou comiseração? Como se tivessem sido expulsos do paraíso prometido, eles se reúnem ao pé de uma árvore, embora continuem solitários.  

A encenação conta com trunfos importantes. A música hipnótica de Arrigo Barnabé impregna o ambiente não para sublinhar os momentos. A intenção é claramente oferecer um contraponto, um ruído. Da mesma forma a iluminação sensível de Renato Machado instaura estados emocionais. A peça coloca em evidência indivíduos que habitam um mundo tão moderno quanto hostil e que parecem fadados a viver isolados. O teatro de objetos não é tão prosaico como alguns imaginam. Ele também pode expor a natureza cruel da realidade.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Fi Ramos)

 

Avaliação: Ótimo

 

Criação, Concepção e Dramaturgia: Grupo Sobrevento

Direção: Luiz André Cherubini e Sandra Vargas

Estreou: 11 de julho

Elenco: Sandra Vargas, Maurício Santana, Sueli Andrade, Daniel Viana e Liana Yuri   

Espaço Sobrevento (Rua Coronel Albino Bairão, 42, Metrô Bresser. Fone: 3399-3589). Sábado e domingo, 20h. Ingressos gratuitos (disponíveis meia hora antes na bilheteria ou pelo email O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. ). Até 18 de dezembro.

 

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