Teatro: Antes Tarde do que Nunca

Foras da lei atrapalhados, um playboy que vive à custa da mãe, um policial enrolado nas palavras e ações, um político sem senso de humor, uma corista que sonha pertencer à realeza britânica. Peculiares, tais tipos que transitam por uma mansão de 47 quartos em Long Island dão vida e curso a este musical, que homenageia a idade de ouro do teatro musical americano e ostenta no currículo diversos prêmios, incluindo o prestigiado Tony Awards. A versão brasileira, adaptada por Miguel Falabella e dirigida por José Possi Neto, preserva a comicidade do texto original do dramaturgo americano Joe DiPietro e executa com fibra e segurança as célebres canções dos irmãos George e Ira Gershwin.

Não se trata de uma montagem movida a inovações na linguagem e ousadias formais. Mas uma produção sofisticada e convencional, com enredo assumidamente farsesco, que combina com habilidade belas músicas, humor físico e aberto ao improviso, números atraentes de dança, personagens estereotipados, soluções tiradas da cartola. Típica comédia de erros, cujo título foi inspirado por uma canção homônima muito popular nos Estados Unidos.

Ambientada nos anos 1920 em Nova York, época de fervilhante criatividade, novos ricos e vigência da lei seca, que proibia a venda de bebidas alcoólicas, a trama improvável se vale de dispositivos conhecidos para capturar a simpatia do público. Preocupado em ser deserdado pela mãe, o charmoso milionário Jimmy Winter prepara-se para o seu terceiro casamento, mesmo sem estar apaixonado pela futura esposa. Na noite de despedida de solteiro, no entanto, quem cruza o seu caminho é a mal-humorada Billie Bendix, contrabandista de gim que se veste como homem e anda procurando um lugar seguro para esconder sua mercadoria. Ele não sabe de sua condição contraventora e ela desdenha das núpcias dele. Apesar das evidentes diferenças, ambos se envolvem amorosamente.

A piada central da inversão de expectativas - a mulher durona e o homem maleável – deslancha a ação, que passa a ter como cenário a rica propriedade da família do noivo, em cuja adega os contrabandistas armazenam as ilegais caixas de bebidas. É uma situação que, ao desdobrar uma sucessão de imprevistos, aos poucos adquire a configuração de barafunda. Sem, no entanto, perder a mão. Isso porque o enredo segue fórmulas já comprovadas e consegue manter o equilíbrio possível entre o espírito dos musicais antigos e os apelos da estética contemporânea, além de construir com astúcia os diversos absurdos que vão se empilhando. E não são poucos. Criminosos se travestem de funcionários, romances imprevisíveis eclodem, sob a lógica de que os opostos se atraem, e revelações estapafúrdias de parentesco afloram no desfecho. Apesar dos recursos não serem inéditos, quanto mais acentuada a improbabilidade, ou o ridículo das circunstâncias, maior o humor.      

José Possi Neto pilota com mãos firmes. Sua direção funciona na medida em que imprime ritmo leve e fluído à encenação. Tudo é bem sincronizado, as marcações são eficientes, os eventos evoluem sem percalços, há timing cômico. Ele manipula com competência os números coletivos de dança, as passagens musicais, os diálogos entre os personagens.

O elenco reunido transpira mérito e vibração. Na pele do milionário cercado de beldades e com sérias dificuldades para manter um matrimônio, Miguel Falabella aciona recursos técnicos para compor o ricaço com espontaneidade e algum grau de auto-ironia. Não é um ator de repertório amplo, mas tem presença forte e carisma. Também à vontade, Simone Gutierrez incorpora Billie, a garota que conquista o coração de Jimmy, com verve, desembaraço e calor. Dona de voz privilegiada, sublinha sua participação quando desfia a delicada Alguém que olha pra mim. A passagem em que contracena com Falabella na cama, pontuada por movimentos de pura acrobacia e contorções, transforma-se em uma das mais divertidas do espetáculo.        

Maquinada de tal forma, a farsa oferece bons momentos aos coadjuvantes. Claudio Galvan, o infrator que se finge de mordomo, mostra versatilidade em seu desempenho e explora ao limite todas as suas intervenções. Com uma gama de trejeitos e maneirismos, Jana Amorim rouba as cenas na composição da vaidosa e mimada noiva Eillen Evergreen, auto-intitulada a maior intérprete de dança moderna do mundo. A atriz adere sem reservas à comicidade natural da mulher preterida, incapaz de ter gestos naturais, e brilha ao se refestelar na banheira enquanto interpreta Belíssima e coristas emergem em meio ao mar de espuma.  

Luciana Milano faz de maneira desenvolta a moralista Estônia, que chega a se dependurar e balançar no lustre na hora de cantar Eu Procuro um Rapaz. Com presença de poucos minutos, mas essencial para o desenlace da história, Naomy Scholling encanta no papel de uma mãe de princípios morais duvidosos. Carlos Capeletti encarna um senador de carreira obrigado a enfrentar algumas verdades inconvenientes e chega a emular a voz do deputado Paulo Maluf em suas falas. A corista que deseja virar membro da monarquia britânica (Ingrid Gaigher, em atuação desembaraçada) e um desastrado muambeiro (Patrick Amstalden, que aproveita clownescamente seu perfil esguio) formam uma dupla que garante boas risadas. Há ainda um apalermado comissário de polícia, em composição intencionalmente afetada de Fábio Yoshihara.    

A montagem funciona plenamente. O cenário de Renato Theobaldo compõe bem os ambientes, como um quarto e a sala de jantar, afinado à proposta de emoldurar os acontecimentos. O bom gosto dos figurinos de Fabio Namatame sobressai. Dirigida por Josimar Carneiro, a orquestra é sensível e colorida. O corpo de bailarinos exibe agilidade e habilidade para dançar os estilos emaranhados na encenação, como charleston, foxtrote e até valsa – as coreografias criadas por Fernanda Chamma passeiam pelo clássico e popular e permitem até uma sátira ao balé moderno. Uma comédia de final feliz, com vencedores e sem perdedores Na contramão da vida real, mas que funciona na ficção.    

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Roberto Ikeda)

 

 Avaliação: Bom

 

Antes Tarde do que Nunca

Texto: Joe DiPietro

Músicas e Letras: George & Ira Gershwin

Tradução e Adaptação: Miguel Falabella

Direção: José Possi Neto

Direção Musical: Josimar Carneiro

Elenco: Miguel Falabella, Simone Gutierrez, Claudio Galvan e outros.

Estreou: 21/08/2015

Teatro Cetip (Rua Coropés, 88, Pinheiros. Fone: 4003-5588). Quinta e sexta, 21h; sábado, 17h e 21h; domingo, 17h. Ingresso: R$ 50 a R$ 230. Até 25 de outubro.

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