EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Eu Tenho Tudo

O local parece uma estação de trem deserta ou abandonada. Nesse ambiente mal iluminado, perambula um homem trajado de terno, que murmura febrilmente. Aos poucos ele se torna compulsivo e desata um diálogo agressivo endereçado a um interlocutor invisível. Cospe insultos e xingamentos contra um inimigo sem identidade e rosto, que se mantém em silêncio ou ausente. Seu discurso é megalomaníaco e pontuado pelo refrão “eu tenho tudo”.  Ele não teme nada, acredita poder destruir qualquer um, se vê poderoso e nem o presidente dos Estados Unidos, mesmo contando com bombas, fábricas e aviões, dispõe de sua força. O outro, em sua concepção, não oferece e não tem nada. Escrita pelo dramaturgo argelino Thierry Illouz, um advogado especializado em direito penal e do trabalho, a peça é um soco no estômago. O texto recebeu montagem inspirada de Cácia Goulart e interpretação poderosa de Pedro Vieira, que mergulhou nas entranhas desse personagem em sua luta desesperada para contornar sua impotência, a suposta condição de vítima e o sentimento de humilhação.

Instalado o desconforto, por meio desse histérico fluxo verbal, o público vira testemunha de seu desprezo e é jogado nessa torrente de ódio que chega, por instantes, a ficar insuportável. Em momento algum a narrativa esclarece as razões de seu comportamento e o porquê de sua revolta. Nota-se apenas que ele, embriagado pela arrogância, se deixou absorver pela ideia fixa de se julgar um homem forte, que precisa conduzir essa batalha imaginária até o fim. A grande sacada do enredo, e um dos motivos de seu interesse, é que o personagem, apesar da exposição triunfalista, não passa de um despossuído, que fracassou em tudo, perdeu o amor, o trabalho e a dignidade. Uma realidade, aliás, que ele procura negar de forma veemente, nem que tenha que repetir regularmente ser detentor de certa quantia em euros na conta bancária. Uma “fortuna” que, presume-se, faria dele um homem superior. Se ele é tão rico como anuncia, por que estaria tão colérico e irascível?

A direção de Cácia Goulart mantém a tensão real a flor da pele e instaura um clima sombrio e fantasmagórico. A encenação ganha feição de uma arena destinada a um acerto de contas. Há problemas na adaptação, como certa redundância e prolixidade que ensebam a trama. Ou sequências que parecem sinalizar um desfecho que não acontece. Nada que esmoreça o diálogo de surdos que se estabelece no palco. Para não cair na monotonia e desandar o ritmo, possível num espetáculo que escorre permanentemente em estado de alta pressão, a saída foi implementar marcações não convencionais e surpreendentes. 

Pedro Vieira é intenso e cresce em cena na medida em que incorpora essa figura sem passado e de destino incerto, atormentada em sua prisão mental, que detém uma arma e crê ser possível exercer justiça com as próprias mãos. O ator exibe domínio vigoroso da linguagem. Ele enfrenta o desafio sem apelar para o clichê e a vulgaridade. A interpretação faz com que o espectador sinta a agitação e o nervosismo do personagem, perceba nas entrelinhas a fragilidade e pobreza espiritual de um homem exposto ao exercício de arrolar suas hipotéticas virtudes morais e materiais. Por sinal, um mecanismo de compensação acionado para lidar com eventos traumáticos.

O autor deve ter se inspirado no dramaturgo francês Bernard-Marie Koltèz, cujas peças são marcadas pela necessidade vital de diálogo, mas que, paradoxalmente, desnudam a impossibilidade da comunicação. Illouz engendra uma crítica feroz ao estado atual da humanidade. A vociferante criatura se rebela contra a imagem que a sociedade construiu dele, a de um sujeito relegado à margem do sistema. Um perdedor, diante de um mundo moldado para estimar e apreciar somente os vencedores. Daí a necessidade de se travestir de arrogante para conseguir suportar a dor.  Para não afundar, ele aponta o dedo para o outro, desdenha do antagonista inventado. Seu poder reside nas palavras. Não por acaso o personagem vai se desfazendo de seu uniforme de executivo – armadura, melhor dizendo - até ficar desnudo Exatamente como ele é ou se encontra no momento. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Cacá Bernardes)

 

Avaliação: Bom

 

Eu Tenho Tudo

Texto: Thierry Illouz

Direção: Cácia Goulart

Elenco: Pedro Vieira

Estreou: 29/01/2016

Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1323, Pinheiros. Fone: 3801-1843). Segunda e terça, 21h. Ingresso: R$ 40. Até 29 de novembro.

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