EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Histeria

Freud está cochilando em sua cadeira, ao lado de seu sofá de terapia. Um tanto confuso, ele desperta da breve soneca. Tudo parece relativamente tranqüilo, mas não demora e o ambiente vira de cabeça para baixo com a chegada de uma série de visitantes inesperados. Entre eles, uma moça emocionalmente perturbada, um amigo que funciona como médico e conselheiro literário e o pintor surrealista Salvador Dali.

Na peça escrita pelo dramaturgo inglês Terry Johnson, o encontro entre um dos psiquiatras mais influentes da história e um dos artistas plásticos mais originais do século passado, revela-se um tema tentador, embora não totalmente perscrutado pelo autor. Assinada por Jô Soares, a montagem empreende esforços para tornar atraente no palco um texto que transita o tempo todo entre a farsa e a reflexão intelectual. O resultado é cômico, como se observa pela reação do público, porém o desequilíbrio original da dramaturgia fragiliza um tanto a encenação.  

A ação transcorre em 1938, quando o octogenário criador da Psicanálise está acometido de câncer na garganta. Ele reside em Londres, fugido recentemente da Europa nazista. Sua preocupação repentina é uma jovem que aparece em sua casa no meio da madrugada, ameaçando ficar nua e se suicidar. Freud, que inicialmente a confunde com uma paciente, irá descobrir que se trata da filha de uma mulher por ele atendida no passado.

A moça irrompe ali para desafiar as teorias da sexualidade propostas pelo anfitrião e evocar questões perturbadoras sobre o sofrimento de muitas daquelas que estiveram sob os seus cuidados médicos e foram classificadas de histéricas. Em 1896, o psicanalista sinalizou que a histeria seria uma disfunção do sexo feminino causado por abuso sexual na infância – posteriormente ele reviu o princípio e afirmou que as memórias da violência sexual seriam provavelmente frutos de fantasias, alentadas por desejos eróticos inconscientes desenvolvidos quando criança.

A trama ganha novos ingredientes no instante em que um apalermado Salvador Dali rebenta em cena. Fã confesso do psicanalista, o pintor catalão é um sujeito presunçoso que proclama sua própria genialidade e fala de si em terceira pessoa. Em sua opinião, ambos seriam almas gêmeas, porque julga a obra de Freud a base para o surrealismo, movimento artístico e literário ao qual se filia. O outro discorda. “Em seu trabalho, você assassina os sonhos", chega a fustigá-lo o psicanalista, por enxergar nos quadros do artista plástico impulsos conscientes. Dali não se abala e reconhece a morte do surrealismo. Mais: confessa seguir esta corrente cultural apenas pelo apelo comercial de suas pinturas, que continuam vendendo bastante. A terceira figura a imiscuir-se na roda é um amigo médico, indignado com Freud, que estaria disposto a publicar a hipótese de que Moisés, o fundador da nação judaica, seria um aristocrata egípcio.

A união de tais elementos dissonantes no enredo é promissora e ao mesmo tempo funciona como válvula de escape para o exercício de humor. São embates difíceis e suscetíveis a intempéries. Dali é uma espécie de criança mimada capaz de enlouquecer, por exemplo, ao cortar o dedo. A fulana faz desabrochar lembranças nada confortáveis ao intelectual recluso. O amigo é o tipo de pessoa que aparece no instante mais inconveniente. A peça evolui entremeando diálogos ricos em ironias - o fundador da psicologia analítica Carl Jung é sempre mencionado de forma debochada -, ações físicas no estilo vaudeville e personagens que, em graus variados, exibem comportamentos estereotipados.

O texto desembala essa combinação de ingredientes de maneira satisfatória, mas parece desleixado no tocante à sua textura dramática. Se a luta verbal entre o psicanalista e a nova paciente soa palpitante por discutir aspectos dos fundamentos freudianos e suas implicações na vida das pessoas, o confronto entre os personagens centrais, essência da intriga, desponta somente divertido. Não se constata um profícuo estudo de personalidades ou entrechoques consistentes em torno dos respectivos trabalhos e trajetórias de Freud e Dali.  

Ainda que não ousada ou inventiva, a direção sublinha toda a parafernália da farsa, caracterizada por portas batendo, entradas e saídas simultâneas, mal-entendidos e situações confusas. Seguro, Jô Soares busca conferir um sentido crível ao jogo, que desenrola uma história imaginativa. Ele dirige o espetáculo num ritmo esmerado, equilibrando-se entre os momentos engraçados e profundos.  

O elenco exprime sintonia com a proposta do diretor. Pedro Paulo Rangel encarna com fleuma e empenho um Freud surpreendido pelos acontecimentos em seu lar, que tanto pode se envolver em um debate escaldante sobre a repressão sexual, se atrapalhar na hora de esconder no armário uma mulher com pouca roupa quanto minar a vaidade e afetação de Dali. Cássio Scapin escancara comicidade na pele do narcisista pintor surrealista. Em sua primeira aparição, o ator exagera um pouco nos trejeitos e desenha uma figura bem caricata. Aos poucos, contudo, deslancha um desempenho mais sutil e contido. Na composição da moça que pretende tirar a limpo alguns assuntos pessoais, a atriz Érica Montanheiro transforma a sua personagem numa figura sensual, insolente e volátil. Convincente como o compassivo doutor amigo, Milton Levy demonstra mais aptidão nas passagens cômicas.

Em uma das melhores sequências, Dali entra na casa de Freud e o flagra ao lado de uma bicicleta infestada de caramujos. O psicanalista está com uma das mãos enfiada em uma galocha e a cabeça enfaixada numa espécie de turbante. Fascinado pela visão, o artista plástico diz que o que ele vê apenas em sonhos, o psicanalista vivencia na realidade. Com alguma dificuldade em perfurar a superfície, a peça esboça uma tentativa de lidar com o legado complicado de Freud. Na chave teatral, a montagem materializa no palco uma tela de Dali.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Priscila Prade)

 

Avaliação: Bom

 

Histeria

Texto: Terry Johnson

Direção: Jô Soares

Elenco: Pedro Paulo Rangel, Cassio Scapin, Erica Montanheiro e Milton Levy

Estreou: 06/05/2016

Teatro Frei Caneca (Rua Frei Caneca, 569, Consolação. Fone: 3472-2229). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 80. Até 26 de fevereiro.  

 

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