EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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A Festa de Abigaiu

Lawrence e Beverly são exemplos irretocáveis de pessoas que tentam ser algo que efetivamente não são. O casal Ângela e Tony, que acabou de se mudar para o condomínio no subúrbio londrino e vai visitá-los, também não fica atrás, apesar dos modos mais provincianos. Não é diferente com Susan, também presente nesse encontro, recém-divorciada e um pouco mais refinada. A perspicaz montagem de Mauro Baptista Vedia, a partir do texto do dramaturgo inglês Mike Leigh, ilustra com mordacidade esse modelo disfuncional de comportamento representado por esse quinteto de personagens. Trata-se do retrato acabado, na visão do autor, de uma classe média suburbana inglesa destituída de verniz humanista, no exercício de um simulacro de civilidade. Semelhante em muitos pontos ao que costumamos constatar desse mesmo estrato social em outras latitudes.  

O enredo desnuda a tese sem pressa. Presunçosa e insensível, Beverly passa a noite inteira oferecendo bebidas e cigarros aos seus convidados, mesmo que eles declinem inutilmente toda vez. E os intimida a concordar com ela em variadas situações, sempre em busca de um aparente consenso. A impressão é a de que nunca senta, movimentando-se de forma ameaçadora pela sua sala de visitas, vulgarmente decorada. Em uma passagem risível, chega a se desmanchar ao som do pop açucarado do cantor grego Demis Roussos. Mais amaneirado em sua atitude, Lawrence mal consegue enfrentar as humilhações que sofre da esposa. Ângela e Tony não são protótipos melhores. Com jeitinho tedioso, ela é uma enfermeira meio infantilizada e seu marido foi um inexpressivo jogador de futebol que hoje sobrevive como operador de computador. Já Susan expressa a imagem do desalento e da inércia. Sustentada pelo ex-marido arquiteto, ela é mãe da Abigaiu do título, a adolescente que promove uma festa de arromba na casa vazia e jamais dá as caras em cena. Com pequenos ultrajes e provocações, o grupo gasta o tempo falando superficialmente de temas previsíveis como casamento, crianças e trabalho, numa eloqüente série de lugares-comuns.   

Leigh se vale dessa confraternização para, além de assinalar o inferno conjugal, articular ácida e selvagem observação sobre o estilo de vida, o apego a valores mortos e os hábitos deletérios desse típico segmento social, em seu esforço vão de parecer polido e ansiar pelo reconhecimento e status. Um insinuante jogo de poder emerge da trama, especialmente na relação entre Beverly, um degrau a mais na pirâmide econômica, e Ângela, espécie de remediada.  

A direção de Vedia ajuda muito na eficácia do texto, impondo clareza e boa dinâmica em cena, traduzida por marcações vivas, ritmo balanceado, pausas e silêncios que valorizam o enredo. Uma combinação harmoniosa num espetáculo em que parece que nada acontece, porque o embate moral e de egos escorre cheio de sutilezas. Ele também instituiu uma intencional desarmonia no registro de interpretação. Cada ator interpreta seu personagem seguindo uma partitura bem particular, do dramático ao cômico, do realista ao antinatural, do clichê à quase caricatura.   

A espontânea adesão do elenco à proposta é visível. Os atores revelam-se ajustados aos seus papéis e encarnam com brilho essas criaturas camufladas. Esther Laccava domina com desembaraço Beverly, um tipo sem requinte, fã de música descartável e apreciadora de arte erótica brega. Sua performance seduz o público porque ela não cai na armadilha do caricato e do riso induzido, alternando-se entre a falsa gentileza e a postura impertinente – ao mesmo tempo em que barra Susan de checar a quantas anda o festim de Abigaiu, ela instila na vizinha a paranóia de que algo de ruim pode estar acontecendo por lá.  

Com atuação determinada e segura, Eduardo Estrela não encontra dificuldades em dar vida ao patético Lawrence, o sujeito autoconfiante metido à intelectual, interessado em escolher coisas que o fazem se sentir superior. Ele se vangloria de seu gosto musical e artístico e de guardar uma coleção de obras de Shakespeare, embora sequer tenha lido um livro do bardo inglês. O ator encontra o equilíbrio certo para operar a transição do personagem que, no início impotente diante da esposa, começa a agir de maneira mais descontrolada até o ponto de ele também se tornar uma presença maçante e antipática para seus convidados.

Ana Andreatta exercita um jeito de falar bem peculiar na execução de Ângela, figura apalermada e sem tato que deixa entrever em poucos minutos a fragilidade de seu casamento. Na composição de Susan, a atriz Fernanda Couto empresta realismo a uma mulher traumatizada pelo divórcio, pouco à vontade neste encontro de vizinhos. Claramente ela gostaria de estar em outro lugar, até para não ter de ouvir que enquanto ela se separava, os outros dois pares se casavam, como aponta a anfitriã. Na divertida criação de Kiko Vianello, o rude Tony se apresenta inicialmente envergonhado e alheio, mas ao longo da jornada insinua-se como um vulcão prestes a explodir. Em uma das melhores sequências, Beverly e Tony flertam durante uma dança, para visível desassossego dos demais.    

Nesse inteligente decalque do cotidiano vulgar de seres comuns, com ecos de Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee no tocante ao ambiente de opressão e dissimulação, o autor mira com agudeza esta classe média oca e consumista, prisioneira das aparências. Nenhuma vez a montagem perde o humor subjacente, o clima de constrangimento, a conduta um tanto surreal daqueles indivíduos. O mais notável é que a ação transcorre nos anos 1970, como o cenário de Álvaro Razuk e os figurinos de Maite Chasseraux evidenciam, mas soa dolorosamente atemporal. A peça prepara uma surpreendente inversão: aqueles personagens aparentemente fortes no início tornam-se fracos no desfecho e vice-versa.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto João Caldas)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Festa de Abigaiu

Texto: Mike Leigh

Direção: Mauro Baptista Vedia

Elenco: Ana Andreatta, Eduardo Estrela, Ester Laccava, Fernanda Couto e Kiko Vianello

Estreou: 06/08/2016

Teatro Jaraguá (Rua Martins Fontes, 71, Centro. Fone: 3255-4380). Sexta, 21h30; sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 50. Até 27 de novembro.

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