O Coração dos Homens

Nua, deitada no divã, a atriz Fernanda Cunha está prestes a iniciar um relato. Enquanto desfia a sua história, ela começa a se vestir. Os eventos que narra ocorreram no longínquo ano de 1984. Numa certa manhã, informa, nevou em Porto Alegre. O surpreendente episódio, o fato do ano para uns e o fim dos tempos na visão de outros, motivou a população a sair às ruas sem a preocupação de levar guarda-chuva, apenas para curtir os flocos brancos derramados do céu.  

Na aparência, parece uma dessas crônicas despretensiosas, fruto de reminiscências, aquelas doces memórias dos tempos de criança. No entanto, o espetáculo dirigido por Henrique Stroeter desdobra sutilezas e alguns sentidos em suas entrelinhas. O espectador atento perceberá que a singela narrativa é apenas um subterfúgio, espécie de zona de conforto, para a personagem resgatar outro assunto, este doloroso e uma cicatriz aberta em sua vida. Ela teve o pai seqüestrado numa fria noite de agosto, escoltado por homens possivelmente ligados ao regime militar. A lembrança é um tanto escassa, porque ela era muito pequena, mas sua mãe contou do esforço empreendido para escondê-la e evitar que também fosse arrastada por aqueles agentes da repressão. O velho acabou voltando para casa dias depois, todo machucado. Para seu inocente olhar, a história foi convenientemente esquecida.   

Sozinha no palco, Fernanda desvela o ocorrido num premeditado tom coloquial, contaminando sua fala com suaves toques de humor ou valendo-se de uma dicção pontuada por resignação, de indisfarçável melancolia. Quase não muda a toada ao enveredar pela saga do colega de escola que acreditava ter aprisionada a neve dentro de um tupperware. O menino fugia dos outros que queriam abrir o recipiente e escancarar publicamente a sua ilusão. O desfecho é amargo, porque as imagens da infância também podem ser opressivas. Com simplicidade sincera, que adorna o seu bom desempenho, a atriz faz um mergulho interno, dolorosamente sofrido, autêntico. Revisita o passado com olhos límpidos e assombrados. Se não projeta maestria técnica, ela consegue capturar a expressão da meninice e do início da adolescência sem parecer pueril ou abobalhada. Caminha no fio da navalha. A personagem vai se compondo na sua figura, na voz, nos seus gestos e nas atitudes.

Delicadamente entrelaçado ao primeiro, o enredo seguinte suscita um rito de passagem. A narradora revela que experimentou a primeira menstruação numa situação pouco trivial. Foi no colégio, durante a encenação em inglês de uma peça infantil. E como lutou para entender a transformação do seu corpo. De novo o estranhamento, a sensação de deslocamento no ambiente, certa expressão da violência, traduzida nas relações de gênero. Sentimentos e pulsões tratados com humanidade por Fernanda, já de peruca, que em momento algum escorrega para a afetação ou o grotesco. Ao evocar o que aconteceu, ela resgata a força do acontecimento.  

O invulgar texto da escritora gaúcha Veronica Stigger flui de forma natural, construído com frases curtas bem ritmadas, que nunca esmorecem. A autora, que revela domínio singular da linguagem, trabalha com histórias que trafegam com desassombro pelo ambiente social e pela esfera individual. E adiciona pitadas surreais aos relatos. A direção de Stroeter opta por prudente reverência. Ele adotou procedimentos simples para que a encenação transcorra sem travas. É uma encenação concisa, enxuta, na medida justa. Com poucos objetos e acessórios cênicos, a funcional cenografia de Marcos Lima persegue o essencial. Por se tratar de um conteúdo em registro confessional, o diretor articula marcações que conduzem a atriz a encarar sem receios a platéia, como se estivesse em plena sessão de terapia desnudando-se emocionalmente. Tornada cúmplice, a audiência é discretamente inserida no calor daquilo tudo que está sendo relembrado. Não é uma imersão profunda, mas o suficiente para amarrar a atenção. Ao mirar o que vivenciou, tocando em feridas, a protagonista expõe a vida em suas dores, felicidades, perdas e encontros.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Erik Almeida)

 

Avaliação: Bom

 

O Coração dos Homens

Texto: Veronica Stigger

Direção: Henrique Stroeter

Elenco: Fernanda Cunha

Estreou: 17/10/2016

Teatro Cemitério dos Automóveis (Rua Frei Caneca, 384, Consolação. Fone: 2371-5783). Sexta e sábado, 19h, domingo, 18h, segunda, 20h. Ingresso: R$ 20. Até 18 de dezembro.   

 

Comente este artigo!