Por Que o Sr. R. Enlouqueceu?

Foi uma edição menos impactante do que as anteriores. A quarta edição da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, que aconteceu nesse mês de março, mostrou trabalhos desiguais, alguns francamente dispensáveis. Um dos que aliviaram a programação foi este espetáculo do coletivo alemão Munchner Kammerspiele, com direção de Susanne Kennedy, responsável pela adaptação teatral a partir do roteiro do filme homônimo do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder.

Um tanto incômoda para alguns, por conta de seu ritmo intencionalmente lento e o tempo expandido, a montagem desembalou uma trama angustiante e dolorosa, por vezes mitigada por momentos cômicos. O minimalismo radical da diretora desacelera os movimentos, faz os atores parecerem mais bonecos do que humanos e promove o distanciamento emocional do espectador – aqui, um procedimento brechtiano, que obriga a uma reflexão por parte do público. A opção por essa estética ousada se revelou oportuna. O conteúdo ganhou expressão e lógica na forma.

Se observado mais genericamente, o enredo trata do esvaziamento do sentido da vida. O mundo em que vive o protagonista é estéril e insosso. As relações interpessoais são geladas, protocolares, melancólicas. Há uma eloqüente incapacidade de comunicação entre os indivíduos. O Sr. R. trabalha como desenhista técnico num escritório impessoal, mantém casamento com uma mulher inconformada com sua pretensa falta de ambição profissional, “quanto mais você envelhece, mais burro e mais gordo fica”, e tem um filho comportado.

Os encontros com os sogros são chochos. O mesmo acontece quando recebe a visita da vizinha tagarela. As celebrações com o chefe não passam de rituais deprimentes. Nas reuniões escolares, escuta sem ânimo a professora ditar regras e palpites sobre como dirimir as limitações do filho estudante. Na loja de disco, ele se esforça para se lembrar do título da música que tanto o emocionou num passado distante. 

As aparências de que o dia a dia asfixiante está naturalmente assimilada sem maiores traumas são enganosas. Toda essa pressão inerente ao seu cotidiano burguês custa um preço, que pode ser fatal. Sutil ou não, a desidratação da humanidade a que está irremediavelmente submetido faz dele uma espécie de bomba ambulante, prestes a explodir.

O mecanismo de embotamento é exasperado pela encenação proposta por Susanne. Há, por exemplo, demorados hiatos entre os diálogos, lapsos propositais entre uma ação e sua correspondente reação, gestos mecanizados, poses incomuns. Os textos, por sinal, não são proferidos em cena – o elenco dubla vozes previamente gravadas, constituindo uma curiosa partitura rítmica. 

O interior de uma claustrofóbica caixa cênica de madeira, destituída de janelas, serve para várias situações, que são anunciadas em off por voz distorcida. O espaço nunca muda, mas ambienta uma sala de estar, um escritório, rua, escola. Como se fosse um circuito fechado de vigilância, um monitor ali posicionado exibe a agitação em um estacionamento ao lado de fora. As cenas que acontecem nesse baú cenográfico são interrompidas regularmente por um telão frontal, abaixado e levantado, sobre o qual são projetados vídeos com pessoas comuns (funcionários) tentando arrumar este mesmo recinto – elas filmam, mudam um vaso de planta de posição, experimentam um sofá. Na função de coadjuvantes, agora ao vivo, irão reaparecer em uma emblemática sequência próxima do desfecho. 

Os atores interpretam com máscaras de silicone, que aderem ao rosto e deixam visíveis apenas os olhos e as bocas. O efeito produz inevitável estranhamento e dá certa impressão de desenho animado às expressões faciais. Eles se revezam pelos diversos papéis. Três intérpretes, com físicos diferentes, encarnam a figura central, estratégia que realça as suas transformações corporais, psicológicas e emocionais. Ele pode tanto surgir no palco como homem alto ou baixo, mais magro ou com barriga saliente. Além disso, conforme seu estado de espírito e circunstâncias, ele transita do infantilmente engraçado ao sujeito inteiramente brutalizado.

Formalmente instigante, o espetáculo vaza um áspero e poderoso estudo sobre a decrepitude do humanismo em um mundo artificializado, com terríveis danos colaterais. O Sr. R. se tornou um produto, algo mais normal do que se quer acreditar. Acabou se despersonalizando em uma sociedade regida por afetos postiços, regulamentos insensíveis e clichês comportamentais. Num grupo, ao ouvir uma piada, é preciso rir, mesmo que a anedota seja sem graça. Não é por acaso que lenta e inexoravelmente ele caminha para a execução de um massacre. O desenlace não surpreende. O bode está na sala e muitos fingem que não o enxergam.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Ótimo

 

 

Comente este artigo!