EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Hysterica Passio

Parece uma peça de terror, protagonizada por seres assombrados pelo passado, fustigados por infâmias sexuais e oprimidos por uma vida de martírios. Na ótica da dramaturga, atriz e encenadora espanhola Angélica Liddell, um dos nomes mais aclamados do teatro contemporâneo, a infância é um estágio de calvário, o mundo não passa de um lugar abjeto e o homem está fadado a chafurdar no lodo. Neste conto de fadas reverso e perfurante, banhado de perversões, culpas e abominações, a ruína de uma família classe média ganha a estética de um circo de horrores, modalidade de diversão muito popular no final do século 19. Nesse tipo de entretenimento, típico de uma época em que cenas horrendas eram toleradas, pessoas deformadas por doenças viravam atração de plateias consumidoras de aberrações da natureza. Não à tôa, em certo momento da montagem, um personagem olha para os espectadores e pede para que se aproximem e toquem nos monstros.

Não é por acaso ainda que uma mulher está confinada em uma jaula. Trata-se da enfermeira “esquálida” Thora, virgem até os 32 anos, que violava o filho pequeno. Hipólito, agora um desumanizado garoto de doze anos com fraturas pelo corpo, quer purgar o passado de maus tratos e preparou uma vingança contra os pais, manipulando a verdade e a mentira. O patriarca, o “pálido” dentista Senderovich, era um homem também de segredos inconfessáveis. “Por que dois seres assim tinham que se encontrar?”, indaga o menino, que vê em ambos a corporificação de um casal repugnante, mas de comportamento “normal” ao saírem à rua.

Este núcleo familiar disfuncional e execrável, envenenado por sua amoralidade, é transposto para o palco por meio de vigorosa encenação do Teatro Kaus Companhia Experimental, em sua segunda incursão pela obra de Liddell (O Casal Palavrakis, 2012, foi a primeira), autora sem medo de tratar pelo registro da ficção abusos que sofreu na infância, com nítidas incursões pela psicanálise – o título, por exemplo, faz alusão às mulheres reprimidas sexualmente, estudadas especialmente por Sigmund Freud.

O espetáculo é difícil e requer transigência por parte de quem o assiste, deve-se alertar. A primeira cena abre com uma criança deficiente informando que irá narrar um conto natalino. Claro, trata-se de uma ironia corrosiva. O público acompanha a decomposição da família e a indigência moral destas criaturas autodestrutivas como se imergisse em um pesadelo. Há sarcasmo e um curioso jogo de oposições na encenação, assinada por Reginaldo Nascimento. Isso porque a trama transcorre em um sugestivo espaço branco, que eventualmente é tingido pela cor vermelha – como sangue vertido e pingado, representação do corpo profanado. Bonecos sem rostos manejados de forma cruel, roupas penduradas em varal, alegoria do pai ausente e poderoso, triciclo em movimentos nervosos e vitrola povoam essa espécie de manicômio. Aos poucos, a atmosfera asseada é turvada e o lugar adquire contornos assustadores. Sente-se o tempo todo um mal estar, a consternação que brota da tragédia.  

Com performances seguras, construídas a partir de efeitos exteriores e depois aprofundados, Alessandro Hernandes e Amália Pereira mergulham no intestino desses indivíduos à deriva. Incumbindo-se de três papeis, o ator transita da incompreensão ao rancor. Seu desempenho como Hipólito, Sanderovich e um mestre de cerimônias é intenso e absorvente. Na composição de Thora, a atriz se vale da energia bruta e mostra força nos momentos de expor as dores de uma mãe abusadora e histérica, mesmo sem aportar mais nuances que poderiam suscitar novos significados às atitudes maternas.

O texto transborda a angústia metafísica de pessoas que caminham inexoravelmente para o colapso. É grave o retrato que descreve das relações destrutivas que enredam personagens nutridos pelo ódio. Angélica Liddell desembrulha a ideia de que a família é o território do flagelo. “Não seria instrutivo se os pais fossem testemunhas de sua obra monstruosa?”, questiona um atormentado Hipólito. Se a peça oferece alguma mensagem moral consistente, deve ser a de que o ser humano é irremediavelmente infeliz. E que só é possível compreender a humanidade por meio da barbárie. Como disse a autora em entrevistas, a felicidade não é um bem acessível. Sintomática a frase de encerramento, proclamada por um cínico Hipólito: “Vocês são inocentes, não se assustem, é a vida real.”

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Fabíola Galvão)

 

Avaliação: Bom

 

Hysterica Passio

 

Texto: Angelica Liddell

Direção: Reginaldo Nascimento

Elenco: Alessandro Hernandez e Amália Pereira

Estreou: 16/10/2015

Oficina Cultural Oswald de Andrade (Rua Três Rios, 363, Bom Retiro. Fone: 3221-4704). Segunda e terça, 20h. Entrada gratuita. Até 10 de outubro.

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