Teatro: Cantando na Chuva

O teatro celebra a história do cinema no palco. É a sensação que se tem ao assistir a adaptação para a linguagem teatral do icônico clássico Cantando na Chuva (1952), dirigido por Stanley Donen e Gene Kelly, com roteiro de Betty Comden e Adolph Green e músicas assinadas por Nacio Herb Brown e Arthur Freed.  A versão brasileira ganhou a liberdade de promover mudanças pontuais em relação à encenação londrina, uma referência que guiou a produção nacional. Se em Londres a transposição descaracterizou aspectos da obra original, aqui se buscou maior fidelidade ao filme - a dança na chuva, por exemplo, era uma sequência adornada por um ensemble, diferentemente do que acontece no longa metragem, um solo arrasador de Gene Kelly. 

Ambientado nos anos 1920, o enredo aborda a transição do cinema mudo para o falado, por meio da história dos atores Don Lockwood (Jarbas Homem de Mello) e Lina Lamont (Cláudia Raia), astros de Hollywood e sinônimos de grandes bilheterias. Com o advento do áudio, que representou uma revolução na linguagem cinematográfica, muitos artistas até então reverenciados tiveram suas carreiras dizimadas da noite para o dia por não conseguirem se adaptar à novidade tecnológica. É o caso da temperamental Lina Lamont, cuja voz esganiçada acabou incomodando os produtores, que não queriam mais bancar uma estrela que, ao abrir a boca, provocava uma cascata de risos na plateia.    

A peça, que acompanha de forma bem humorada a mudança de paradigma na forma de fazer filmes, embute outros temas importantes, bem explorados na montagem. Um deles é o culto à celebridade, como se observa nas badaladas avant-premières, com o público urrando ao avistar um artista. Outro é a discussão entre cinema e teatro, resumida no diálogo entre os personagens Kathy Selden (Bruna Guerin) e Don Lockwood. “O cinema não passa de pantomima”, provoca a aspirante à atriz, que enaltece a arte teatral, “uma expressão artística de verdade, repleta de diálogos grandiosos”. Há ainda brincadeiras em torno dos clichês cinematográficos. Numa cena em que Cosmo Brown (Reiner Tenente) toca piano, ele enumera os lugares comuns que irão rechear a película O Cavaleiro Galante, sobre a Revolução Francesa, protagonizado pelo amigo Don Lockwood – o filme dentro do filme, aliás, rende muitas gargalhadas por conta do despreparo de Lina Lamont em não saber articular seu texto diretamente no microfone.

À frente de um conjunto de trinta atores, o diretor americano Fred Hanson consegue extrair bom rendimento de todos e imprime ritmo fluído ao espetáculo. Jarbas Homem de Mello se firma como o maior ator de musicais no Brasil. Canta, dança e representa exibindo excelente técnica. Ele fulgura no emblemático número em que cantarola a canção-título desfilando pela rua sob chuva torrencial - Gene Kelly aprovaria sua performance. O ótimo efeito especial da água vertida sobre o espaço cênico, por sinal, leva a audiência ao delírio. Bruna Guerin está adorável como Kathy Selden, papel imortalizado na tela grande por Debbie Reynolds. Aos poucos se torna um dos nomes mais expressivos no cenário musical brasileiro e cativa o espectador ao interpretar Good Morning (Bom Dia). O desafio de dar vida à Cosmo Brown (Donald O’Connor, no filme), um sujeito de humor saliente e imponderável, coube a Reiner Tenente, responsável por alguns dos trechos mais espirituosos da trama – sua interpretação de Make’Em Laugh (Faça Rir) é memorável.

Cláudia Raia aparece em dose dupla. Cria um tipo muito interessante ao encarnar a ingênua e ambiciosa Lina Lamont, a intérprete de péssima voz que se perde após o fim do cinema silencioso. Ela se torna quase uma vilã, porém com encanto e empatia. O tempo todo, a atriz fala e canta num tom esganiçado, tarefa complicada a que vence com desembaraço. Em um de seus bons momentos, ela se atrapalha ao usar o microfone e gira sempre a cabeça na hora errada, até despencar do banco. Em outra função, Cláudia incorpora uma dançarina no quadro Broadway Melody. Em que pesem o empenho e a entrega, sua presença neste ponto carece da leveza e da sensualidade que notabilizaram Cyd Charisse no filme. Sérgio Rufino (produtor R. F. Simpson) e Dagoberto Feliz (diretor Roscoe Dexter) desembrulham atuações seguras. Thiago Machado (Rod), Nábia Villela (Dora Bailey e Sra. Dinsmore), Fabio Saltini (professor de dicção) e Luciana Milano (Zelda Zanders) completam o elenco principal, também no mesmo nível. Em projeções em preto e branco, filmadas especialmente para este trabalho, Marcelo Médici e Reynaldo Gianecchini se mostram à vontade e sintonizados à proposta.  

Formou-se uma equipe criativa de gabarito. Mariana Elisabetsky tem se revelado uma versionista de mão cheia. Ao lado de Victor Muhlethaler, capricharam na versão das letras das canções, que se encaixam perfeitamente na melodia, resultando numa sonoridade agradável aos ouvidos. Os cenários imponentes de Josh Zangen, aliados ao design de luz de Cory Pattak, produzem um efeito mágico à mise-en-scène. Fábio Namatame se inspirou nos figurinos das décadas de 1920 e 1930 para recriá-los, passando ao largo da mera transposição documental, com olhar mais contemporâneo. As coreografias inéditas, elaboradas por Kátia Barros, são assumidas com brilho por toda a trupe. Os números de sapateado foram coreografados por Chris Matallo, que se valeu de técnicas especiais para compor as cenas de chuva. O diretor musical e regente Carlos Bauzys concebeu belas orquestrações para os catorze músicos. No dia em que este crítico assistiu, a orquestra foi pilotada pelo segundo regente Jorge de Godoy. A trilha sonora, juntamente com as coreografias, merecem fartos elogios. É praticamente impossível não sucumbir aos encantos de Cantando na Chuva. Quem não conhece o filme, certamente vai querer assisti-lo.

(Vinicio Angelici – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Caio Gallucci)

 

Avaliação: Ótimo

    

Cantando Na Chuva

Texto: Betty Comden e Adolph Green

Letras e Músicas: Nacio Herb Brown e Arthur Freed

Direção Cênica: Fred Hanson

Direção Musical: Carlos Bauzys

Elenco: Jarbas Homem de Mello, Cláudia Raia, Bruna Guerin, Reiner Tenente e outros.

Estreou: 12/08/2017

Teatro Santander (Complexo do Shopping J.K. Avenida Presidente Juscelino Kubitschek, 2041, Itaim Bibi. Fone: 4003-1212). Quinta e sexta, 21h; sábado, 17h e 21h; domingo, 16h e 20h. Ingresso: R$ 50 a R$ 260.

   

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