EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Se Existe Eu Ainda Não Encontrei

Ao longo de uma hora e meia os personagens dessa peça se destroem. Basta acompanhá-los em seu desolado cotidiano para notar o vácuo em que caíram. A peça do dramaturgo inglês Nick Payne é o retrato de uma família que não é um modelo a ser seguido. Mas o comportamento disfuncional desse clã não salta à vista como um drama pesado. Entre golpes e ruídos de comunicação há espaço para o riso e alguma dose de humanidade, pulsões que encontram equilíbrio na eficiente montagem assinada por Daniel Alvim. O texto busca uma analogia, não totalmente satisfatória, entre a situação do meio ambiente no planeta e a condição de uma família tipicamente classe média, como ambos podem se atravessar e aclarar a trajetória um do outro.

Um tanto amarga e só na aparência simples, a trama reúne seres autoabsorvidos em suas rotinas e fustigados por sérias dificuldades de convívio. A isolada Anna é uma adolescente de 15 anos acima do peso, sem amigos e vítima de bullying na escola secundária. Seu pai, o compulsivo George, tornou-se um ambientalista obcecado com o aquecimento global e emissão de carbono, que não viaja de avião e está escrevendo um livro destinado a salvar o mundo. A mãe, a impotente Fiona, leciona teatro no mesmo colégio onde estuda a filha única. Os dois mantém um casamento cada vez mais estéril, mal detectam a solidão e negligenciam na educação da garota. Sem que estivesse sendo esperado, o irmão mais novo de George, o errático Terry, reaparece do nada e se instala na casa – ele está desassossegado por causa da paixão por uma mulher comprometida. Ao perceber o desastre da falta de diálogo naquele núcleo, o visitante passa a ser uma espécie de catalizador de mudanças, um sujeito capaz de despertá-los do retiro e atribuir importância aos relacionamentos interpessoais.   

A história adquire calor afetivo por meio da conexão entre os desajustados Terry e Anna. No momento em que a vulnerável menina é suspensa das aulas, após episódio de agressão física, o afetuoso tio passa a cuidar dela durante algumas semanas. Lentamente eles desenvolvem uma amizade que, de maneira sutil, comporta uma não assumida atração sexual. Não é de espantar que se aproximem, afinal, falam a mesma língua, sentem igual pesar existencial e parecem à margem da dita normalidade. No intuito de contribuir na sua função de mentor, Terry acaba trocando as mãos pelos pés, especialmente quando os pais descobrem que ele havia dado um preservativo para a adolescente usar em um encontro com um colega.

Todo o enredo transcorre em um espaço despojado, cenografia de André Cortez, forrado por objetos cênicos movimentados pelos atores permanentemente no palco - às vezes estão fora da ação, meio que camuflados da visão da plateia. A onipresença é um recurso interessante porque obriga o público a lembrar-se sempre da crise que atormenta aquelas figuras emocionalmente instáveis. Alvim faz a encenação escorrer sem percalços, propondo marcações criativas que facilitam a compreensão dos eventos e a transição entre as cenas. A direção teve o cuidado de regular a intensidade dos vínculos interpessoais com o intuito de evitar a materialização de um reles melodrama. Com isso, as explosões emocionais acontecem quase de maneira silenciosa.

O elenco funciona bem em conjunto. Na pele do desenraizado e impulsivo Terry, o ator Luciano Gatti empenha performance vigorosa, frenética e compassiva. Ele faz do tio uma pessoa solidária e de coração aberto, que propiciará à sobrinha a sensação de autoestima. É um papel que permite dar vazão a um conjunto meticuloso de expressões faciais, atitudes e sentimentos profundos, que o ator assume com desembaraço e total veracidade. Leopoldo Pacheco destila nuances na composição do gaguejante e alheio George, um acadêmico enfastiado, que no decorrer dos acontecimentos ganha consciência de sua miséria como pai e marido, embora sofra com recaídas durante a trajetória – há uma sequência em que ele decide passar algum tempo ao lado da filha, mas decide interromper o encontro para atender o telefonema de alguém. Pacheco chega a ser visceral em um monólogo de George, cujo cerne põe em dúvida a necessidade de salvação da raça humana.  

Com desempenho pungente, Helena Ranaldi ilustra a fragilidade de Fiona, uma mulher frustrada no casamento e alienada em sua própria atividade profissional. A jovem atriz Lyv Ziese revela-se uma surpresa. Sua interpretação da angustiada Anna, uma moça que não pede nada nem espera nada, é segura e crível, sem risco de cair no clichê da adolescente estridente. Ela soma vulnerabilidade e potência ao dar vida a uma garota que tem um exemplo em casa do que não fazer.    

Por meio de diálogos ágeis e precisos, o autor desdobra uma profunda compreensão do campo minado que é uma família em desalinho e míope para os problemas mútuos. Payne se safa de um juízo de valor e apenas observa. O título acaba soando cruel porque brinca com a impossibilidade da existência de uma fórmula para lidar com a vida e suas inconstâncias. A cada segundo busca-se uma saída, mesmo sem saber exatamente qual. O espetáculo é engraçado e tocante. Uma fotografia sincera da vida em marcha.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Priscila Prade)

 

Avaliação: Ótimo

 

Se Existe Eu Ainda Não Encontrei

Texto: Nick Payne

Direção: Daniel Alvim

Elenco: Helena Ranaldi, Leopoldo Pacheco, Luciano Gatti e Lyv Ziese

Estreou: 30/09/2017

Teatro Eva Herz (Conjunto Nacional – Livraria Cultura. Avenida Paulista, 2073, Jardins. Fone: 3170-4059). Sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 50. Até 10 de dezembro.

 

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