EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Dogville

O título batiza um rústico vilarejo fincado no final de uma estrada sem saída, habitado por pessoas à primeira vista afáveis e hospitaleiras. De súbito, a rotina dali é abalada pela intempestiva chegada de uma jovem em busca de teto para se esconder de uma quadrilha de gangsteres. Sensibilizado pela difícil situação de Grace, o aspirante a escritor e metido a filósofo Tom convence o povoado a acolhê-la em troca de pequenas incumbências. Ela passa a tomar conta das crianças, auxiliar os estudos dos jovens, fazer companhia aos que precisam e empreender outros serviços.   

As coisas, no entanto, se complicam. A polícia, mancomunada com a milícia que a persegue, está em seu encalço, distribuindo pela região cartazes ilustrados com a sua foto. Sentindo-se ameaçados e acuados, os moradores decidem exigir mais dela. Por não ter ligações orgânicas com o lugar, e em posição vulnerável, a agora indesejada visitante começa a ser subjugada por todas as famílias, violada pelos homens e impedida até de ir embora. O horror se naturaliza nesta “cidade do cão”. Não à toa, a trama acontece em plena depressão econômica pós-1929, que propiciou a ascensão ou consolidação de violentos regimes nacionalistas, como os de Mussolini na Itália e Hitler na Alemanha. Típica representação da xenofobia, a fugitiva cai em desgraça por simbolizar a figura do estrangeiro que, por presunção, desestabilizaria a paz e a harmonia da província.

Encenada pela primeira vez no Brasil pelas mãos de Zé Henrique de Paula, a peça é a versão cênica do dramaturgo e encenador dinamarquês Christian Lollike para o angustiante filme homônimo do conterrâneo Lars von Trier (2003). O controvertido cineasta estruturou o longa-metragem em linguagem teatral, desenvolvido em cenário único, sem paredes e muros, atulhado apenas com algum mobiliário. Sobre um chão preto, riscos de giz demarcavam as casas e espaços públicos.    

A montagem do texto tem início com um narrador mencionando o autor inglês Harold Pinter, que discorreu sobre a tênue linha entre a realidade e a ficção. A reflexão prepara o espectador para embrenhar-se em uma história marcada pela universalidade e diversas referências. Sob determinados aspectos, por exemplo, o enredo de Dogville remete à A Visita da Velha Senhora, do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt. Aqui, os valores éticos em uma cidadezinha são colocados à prova a partir da possibilidade concreta de todo mundo enriquecer às custas da morte de um de seus cidadãos. Nota-se também influências do teatro pedagógico de Brecht. A música Jenny dos Piratas, da Ópera dos Três Vinténs, desvela o desejo de vingança de uma humilde camareira de hotel desprezada pela comunidade inteira.

Bem cuidado e envolvente, o espetáculo se abastece da estética do cinema, na contramão da perspectiva teatral da famosa película. A ação ganha o reforço de vídeos pré-gravados e imagens captadas ao vivo durante a encenação. As telas e as cadeiras, que são manipuladas pelo elenco para retratar os ambientes e que funcionam ainda como representações humanas, compõem a medula do cenário de Bruno Anselmo. O viés cinematográfico, embora não tão indispensável assim, intenciona expandir e sublinhar a expressão dos intérpretes. As linguagens são costuradas de modo a dialogarem e não se estranharem, em feliz interação. Zé Henrique saiu-se bem do desafio de não emular a obra primária, cuidando de pôr a salvo a densidade do material disponível. Ele realça a aspereza do tema, a ausência de qualquer noção de civilidade daquela sociedade e a atitude pusilânime e recalcada de seus nativos. Se no filme a cena crucial do primeiro estupro transpira ultraje ao ser observada com indiferença pelos vizinhos, no palco o abjeto ato flui ao som do tradicional hino cristão anglicano Amazing Grace, entoado por um coro liderado por Martha (Anna Toledo). O arranjo da canção é assinado por Fernanda Maia, responsável pela competente trilha sonora original da produção.

A coesão, a sintonia e o vigor caracterizam a numerosa trupe de dezesseis atores. Dona de performance encorpada e sutil, Mel Lisboa irradia a pureza, o servilismo e a resiliência de Grace, que se subordina inerte ao comportamento patife daquelas criaturas por acreditar ingenuamente na dignidade humana. O prenome da personagem, aliás, faz irônica alusão à ideia da graça divina, a dádiva que o criador decidiu oferecer ao lugarejo. Intérprete do mentor filosófico, Rodrigo Caetano funde flama, insolência e vileza na composição de Tom, um sujeito que se dedica a promover reuniões regulares para polir o convívio e o aprimoramento moral da localidade. Valendo-se de registro vocal alterado, Eric Lenate imprime brilho, expressividade e persuasão ao narrador, que relata os acontecimentos como se fosse uma fábula infantil. Em dupla jornada, destila frieza e impiedade ao encarnar o velho gângster. Sem dificuldades, e estampando físico adequado ao papel, Fábio Assunção incorpora o ressabiado e insidioso Chuck, um cara bruto que não se acanha em confrontar a refugiada desde o início. Com menos falas, os demais preenchem suas funções exibindo firmeza e segurança, em intervenções pontuais e não menos importantes. Anna Toledo, Blota Filho, Bianca Byington, Chris Couto, Fernanda Couto e Selma Egrei, entre outros, vivem tipos suscetíveis, egoístas, insensatos, inclementes, que adornam esta aldeia irracional e bestializada.  

Ao longo de duas horas o público se vê diante de uma parábola de ares apocalípticos, dividida em um prólogo e nove capítulos, uma mordaz visão da natureza humana e seus instintos selvagens, taras inconfessáveis e espúria moralidade. Nesta tragédia nada lisonjeira, uma mãe chega a dar o mau exemplo de rancor e torpeza na frente de seus filhos. O diálogo final entre o pai e a filha é pontiagudo. Grace se convence de que o seu esforço genuíno resultou apenas em dor, martírio e desilusão. Ao resgatar um poder que sempre teve, mas que se recusara a exercê-lo, ela se insurge. O discurso de Lars von Trier soa veemente no epílogo. A repugnante Dogville terá de ruir e do vácuo aflorar uma nova utopia. Sintomaticamente o único poupado será o cachorro Moisés, espécie de sentinela deste inferno.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Renato Mangolin)

 

Avaliação: Ótimo

 

Dogville

Texto: Lars Von Trier

Adaptação Teatral: Christian Lollike

Direção: Zé Henrique de Paula

Elenco: Mel Lisboa, Fábio Assunção, Rodrigo Caetano, Eric Lenate, Anna Toledo, Blota Filho, Bianca Byington, Chris Couto, Fernanda Couto e Selma Egrei  e outros.

Estreou: 24/01/2019

Teatro Porto Seguro (Alameda Barão de Piracicaba, 740, Campos Elíseos. Fone: 3226-7310). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingressos: R$ 60 a R$ 90. Até 31 de março.

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