Teatro: Ricardo III ou Cenas da Vida de Meierhold

O renomado ator, diretor e teórico russo Vseyolod Meierhold (1874-1940) tem a anuência das autoridades stalinistas para montar o clássico Ricardo III, de Shakespeare. Acontece que o processo de trabalho está longe de ser tranquilo. Sucessivas comissões oficiais cercam os ensaios de suspeitas e exigências, que acabam adulterando as concepções originais do encenador. Os figurinos são muito modernos e não preferivelmente de época. Indícios de transgressão no comportamento dos personagens precisam ser banidos. Os silêncios previstos no texto devem ser removidos porque suscitariam significados inconvenientes. Ou seja, o não dito pode ser mais letal que o falado.

Dirigida por Clara Carvalho, a inspirada montagem segue fielmente as premissas da dramaturgia instigante do autor romeno Matei Visniec. A trama é protagonizada por Meierhold, um dos nomes medulares da vanguarda teatral da União Soviética do início do século passado. Na vida real, ele foi preso em 1938 pela autocracia de Stalin e executado dois anos depois. Na ficção, prostrado em uma cadeira, está cumprindo os últimos dias na prisão. Tal circunstância o faz perder-se em suas memórias, fantasias e pesadelos, que ganham concretude no palco. Ele então passa a receber visitas de agentes políticos, como o sinistro Generalíssimo, figuras da obra shakespeariana e de familiares. Sem que seja uma surpresa, pais e esposa reverberam os valores do regime soviético e, como os demais, se posicionam a serviço da censura. Até o filho recém-nascido, um monstruoso boneco de manipulação (criado por Beto Andreta), o trata como reacionário. O bebê é o tal “homem novo” engendrado pelo stalinismo. Ricardo III e o ator que o encarna, ambos indiscrimináveis em sua mente, também o martirizam. Forma-se um cruel e delirante jogo, centrado em um renegado indivíduo que vê seu projeto teatral se esfarinhar de forma tortuosa. Meierhold vive o drama de estar ou não exercendo uma espécie de autocensura. Teria ultrajado suas convicções e princípios e se sujeitado aos cânones da ditadura? 

Nesse mundo oblíquo e sinuoso, Shakespeare não está interditado. Porém, Ricardo III contém supostamente elementos subversivos para a classe trabalhadora. Por isso Meierhold é instado o tempo todo a abrir mão de sua versão personalíssima da peça e acolher as observações absurdas vociferadas pelos comitês de fiscalização artística, responsáveis pela concessão do visto ideológico. Por exemplo, ele queria retratar o monarca como um tipo comum, mas isso incomoda os dirigentes. Um diálogo fornece a medida da ousadia pretendida. Em certa passagem, Ricardo III quer entender as razões que levaram o diretor a delineá-lo como um ser humano mais amigável e menos brutal. “Você representa o mal sem as armadilhas da ideologia. Mata para conseguir poder, mas não mata em nome de alguma grande utopia”, ouve, perplexo.

A absorvente e estilizada direção de Clara Carvalho equilibra cuidadosamente sequências absurdas e realistas. Sem afetação, disponibiliza recursos simples e marcações ditadas pelo desenrolar dos diálogos. Ela consegue sublinhar o caráter bizarro e caricato de uma situação que extrapola as fronteiras soviética e guarda similaridade com os tempos sombrios da era Ceausescu na Romênia (1965-1989), encerrada após a deposição e fuzilamento do ditador.

O elenco reunido destila a necessária eficácia e as boas performances dão consistência à narrativa. Rubens Caribé movimenta-se com desembaraço e diligência na composição de um assombrado e estupefato Meierhold. Duda Mamberti alcança rendimento seguro na pele do sinuoso Generalíssimo. Rogério Brito emana frescor na criação irônica e desinibida de Ricardo III. Nos demais papéis, Fernanda Gonçalves, Junior Cabral, Lívia Prestes, Mara Faustino e Rogério Pércore se desincumbem de suas funções com acerto e entusiasmo. A ação transcorre em um cenário despojado, adornado pela imagem gigante do olho de Shakespeare, de grande força simbólica, numa eficiente construção de Chis Aizner. A iluminação de Wagner Pinto e a música de Ricardo Severo alinham-se para a leveza e viço da empreitada. 

Apesar da seriedade do assunto, trata-se de uma comédia na qual o riso serve como válvula de escape de uma farsa soturna. O espectador imerge em um espetáculo que exala uma atmosfera surrealista, que embaralha habilmente o trágico com o ridículo e articula crítica arguta e sutil ao poder e seus arbítrios. Aqui, o personagem central se sacrifica em nome da arte independente e livre. Mas sua luta é desigual, uma vez que do outro lado do campo se mobilizam censores munidos de variados tipos de estratagemas para pressionar artistas e enquadrá-los ideologicamente. Não por acaso, todos aqueles que circulam ao seu redor estão imbuídos do propósito de convencê-lo de que o que ele acredita e pensa é falso e injustificável. No entanto ele resiste, porque sua existência funciona para denunciar a manipulação e a lavagem cerebral instituídas. Quando familiares, lacaios e outras criaturas ridículas, que sabem muito bem a quem estão servindo, malogram em seu intuito de calar as ideias, o que sobra é a aniquilação física do cidadão.  

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Luciana Zacarias)

 

Avaliação: Ótimo

 

Ricardo III ou Cenas da Vida de Meierhold 

Texto: Matei Visniec

Direção: Clara Carvalho

Elenco: Rubens Caribé, Duda Mamberti, Fernanda Gonçalves e outros.

Estreou: 1/6/2019

Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1.000, Liberdade. Fone: 3397-4002). Ingresso: R$ 30. Sexta e sábado, 21h; domingo, 20h. Em cartaz até 7 de julho.

 

 

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