EDITOR: Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

 

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Teatro: Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca

Os temas da peça são esfregados na cara. As cidades se transformaram em campos de concentração e tensão. Movimentos imobiliários em bairros escolhidos a dedo disparam os preços dos imóveis, um processo que expulsa antigos moradores para acomodar confortavelmente os novos donos do pedaço. É a falácia do discurso das obras que beneficiam a todos. Praças públicas ganham cercas para usufruto privado. Gente já sem moradia é despejada de seu canto. Empregos são dizimados e o desempregado cai na informalidade, perdendo direitos trabalhistas clássicos. Vira camelô, faz bicos, se torna motorista de aplicativo, ideia mistificadora de empreendedorismo.  

O texto do dramaturgo Victor Nóvoa não tem medo de cutucar o vespeiro da gentrificação, da precarização do trabalho, da falta de empatia. A itinerante e imersiva montagem é dirigida com rigor de relógio suíço por Eliana Monteiro, que precisa equilibrar vários elementos em espaços públicos de controle instável. Trata-se de mais um trabalho oportuno da inquieta companhia A Digna (Condomínio Nova Era / Entre Vãos), que costuma desatar reflexões sobre as relações de poder e suas implicações no contexto urbano das metrópoles.  

Há um mal estar latente numa sociedade em que muitos patinam na informalidade e lutam pela moradia própria, sem perspectivas de alcançá-la, e poucos têm o privilégio dos bons empregos e de morar em requintados condomínios residenciais. Não por acaso, o convidado para a festa de lançamento de um desses enclaves planejados de luxo, no tradicional bairro paulistano da Barra Funda, é pego no contrapé. Ao confirmar sua presença, ele passa a ser assediado em seu whatsapp por mensagens publicitárias e vídeos curtos que o familiarizam com o empreendimento Ilhas dos Sonhos Barra Funda. “Descubra essa nova forma de viver e conviver na cidade”, anuncia pomposamente o sorridente empresário do ramo (papel de Victor Nóvoa), uma dessas criaturas engomadinhas que vendem sonhos, fantasias e fetiches. Somos apresentados ainda para algumas das figuras do idílico oásis imobiliário, presumíveis moradores felizardos que visitaremos no dia da sessão.

Curioso e sob o efeito anestesiante da publicidade do novo projeto que o espectador aguarda em sua residência, no horário combinado, a chegada de um motorista de aplicativo – são doze contratados pela produção. Ele o levará até à idílica ilha. Como não se trata de uma obra convencional, a provocativa experiência dramatúrgica começa quando se entra no veículo.     

Ao longo do trajeto, o participante é atiçado a interagir com o condutor, treinado para acionar gatilhos de conversa que de alguma forma tratam dos assuntos relacionados à proposta. “O que você acha da segurança pública?”, ele quebra o gelo. Logo emenda um episódio de discriminação que vivenciou. Um diálogo sobre a desigualdade social se estabelece. Os que têm mais dinheiro podem escolher onde desejam morar. Para os mais pobres, a escolha é restrita. Aflora uma discussão sobre a sobrevivência difícil em empregos transitórios, desprotegidos, incertos. Pela janela do carro avistamos entregadoras de bicicleta que, sem tempo em meio a uma pilha insana de encomendas, precisam almoçar quentinha no meio fio – as cinco ciclistas engajadas à encenação são do coletivo Señoritas Courier. A estação de rádio fictícia toca músicas, vomita propagandas e transmite entrevistas com os bem-aventurados do tal bairro projetado. Apreensão: de repente a emissora veicula a notícia do atropelamento de um desses trabalhadores sem carteira assinada (papel de Ícaro Rodrigues). Todos sabem que a empresa para a qual o desafortunado presta serviço não irá se responsabilizar.

Aos poucos, o que parecia ser um mosaico de cenas soltas e fragmentadas adquire sentido e nexo. Ficção e realidade se fundem naturalmente. É bom que se diga que o texto, de expressão épica, não reinventa a roda. Em sua sintaxe, escancara mais um capítulo do processo de desumanização em curso nos tempos atuais. Em dado momento, o automóvel circula por alamedas internas de um desses paraísos da classe média com posses. Trezentos metros adiante, ficamos chocados ao saber de famílias sem teto que foram retirados da pracinha onde haviam armado suas barracas. Claro, elas não podiam macular a paisagem utópica. Mal o relato é digerido, distingue-se um cantinho de flores brancas e velas acesas, homenagem às vítimas da barbárie institucionalizada.      

Desembarcados no showroom do Ilhas dos Sonhos Barra Funda, os 24 espectadores da sessão são divididos em dois grupos e assistem simultaneamente, por meio de vídeos gravados, duas histórias de incomunicabilidade. São protagonizadas por aqueles personagens que ouvimos a respeito durante a corrida ou previamente pelo aplicativo de mensagens instantâneas. Em uma delas, um casal disfuncional (Helena Cardoso e Paulo Arcuri) se afunda em discussões sobre religião, sexualidade e consumo. Na outra, um trauma do passado abala o convívio entre uma mãe autoritária (Eliana Bolanho) e sua filha emudecida (Ana Vitória Bella).  

Nóvoa não se limita a cutucar o vespeiro da desigualdade econômica. Esta e outras patologias decorrentes estão bem evidenciadas na dramaturgia. O envenenamento se dá também no interior das famílias de bem. Violência, truculência, agressão e morte foram naturalizadas. Quem se importa com o homem atropelado? A acumulação de capital de uns acaba por fazer recrudescer as hostilidades e intolerâncias. Riqueza e pobreza são igualmente tóxicas para a coletividade. A cena final na rua deserta passa longe do panfletário. Se não chega a ser contundente, dá contornos a um modelo de sociedade que, a bem da verdade, não funciona para ninguém. Quem tiver ouvido e olhos que ouça e veja.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Victor Nóvoa)

 

Avaliação: Bom

 

Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca

 

Texto: Victor Nóvoa

Direção: Eliana Monteiro

Elenco: Ana Vitória Bella, Eliana Bolanho, Helena Cardoso, Ícaro Rodrigues, Paulo Arcuri e Victor Nóvoa

Estreou: 09/10/2021. Em cartaz até 28 de novembro.

Sábado e domingo, 18h30. Ingresso: R$ 20. Venda: https://adigna.com

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