Teatro: Morte e Vida Severina

O tempo não empoeirou a obra. Está certo que os movimentos migratórios provocados pela seca e miséria, tão bem retratados neste poema de 1955, foram substituídos por outros tipos de deslocamentos geográficos, mas a expectativa de uma vida melhor ainda é um impulso permanente no ser humano. Transposto para o teatro, o poema virou um clássico. Silnei Siqueira assinou montagem lendária em 1965, premiada no ano seguinte no Festival de Teatro de Nancy, na França. Outras produções relevantes se sucederam.    

Décadas depois o auto de Natal mantém a potência temática e a expressividade originais, por conta da bem engendrada combinação entre o texto de caráter social e político de João Cabral de Melo Neto e a inspirada música de Chico Buarque. A sua mais nova versão teatral, com direção de Elias Andreato, é um trabalho que transpira beleza poética ao narrar o percurso ziguezagueante do retirante Severino, um sujeito que, como ele mesmo informa no início de maneira peculiar, “tem o mesmo nome, a mesma cabeça grande e o mesmo destino trágico do sertão: morrer de emboscada antes dos vinte anos, de velhice antes dos trinta e de fome um pouco a cada dia.”

Escorado em versos secos, cortantes e sonoros, escritos em linguagem regionalista, acompanha o percurso do protagonista do sertão pernambucano até o litoral de Pernambuco, guiado pelo rio Capibaribe. Nesse trajeto por paisagens inóspitas, a presença de situações de morte, pobreza e subnutrição é constante.  Mal começa a jornada e ele se depara com homens conduzindo um defunto na rede, morto em uma cilada. Mais adiante e a cantoria de uma novena, em reverência a um falecido, desperta a sua atenção.

Coeso e vibrante, o espetáculo é nutrido por cenas de forte intensidade. Ao tentar ocupação em uma pequena vila, Severino é informado pela mulher da janela de que suas habilidades com a terra não servem de nada. Só quem trabalha com ofícios ligados à morte, e há muitas ali, consegue sobreviver. Em passagem pungente, ele presencia o funeral de um lavrador, um número musical desenhado como um manifesto dos oprimidos. Em seu destino final, resignado, descobre que o cenário não é mais a terra seca e sim o mangue, também espaço de carências e indigências - retirantes enlameados caçam caranguejos. O suicídio passa ser uma possibilidade. Uma das chaves de entendimento da narrativa é a conversa que ele trava com um morador local, subitamente interrompida pelo anúncio do nascimento de uma criança, em clara alusão ao advento de Jesus. Trata-se de uma nova vida que teima em surgir em meio à tanta escassez, sofrimentos e mortes.

Na encenação, Andreato mantém a natureza coral da obra e valoriza as diversas camadas da história, o encanto dos versos, os diálogos milimétricos reveladores e a riqueza dos personagens. Em momento algum despeja rodeios e ingredientes supérfluos à montagem. A abordagem é sofisticadamente minimalista.

Não existe discrepância no elenco formado por treze atores e cinco músicos. A naturalidade da locução, em sentido contrário à reles declamação das palavras, e a assimilação de cada um sobre os papéis representados elevam o patamar da mis-en-scène. Dono de voz pujante, cumplicidade com a plateia e emoção calibrada, Dudu Galvão é tocante na pele de Severino. Badu Morais incorpora a mulher da janela derramando autenticidade e paixão. Jana Figarella aciona energia e teatralidade na cena do funeral. Os coveiros vividos pelos competentes atores João Pedro Attuy e Raphael Mota transpiram ironia em suas falas. As atrizes Patrícia Gasppar e Andréa Bassitt são insinuantes na composição das ciganas. Jonathan Faria, o Mestre Carpina, é uma figura proeminente e dá credibilidade em seu momento. Os demais intérpretes oferecem bons desempenhos e são afeitos ao território poético. 

Percebe-se uma produção esmerada. A equipe criativa captura o sentido do que é contado e expressa no palco todas as sutilezas e nuances da peça. Os adequados figurinos de Fabio Namatame e a luz lírica de Andreato e Júnior Docini transportam o espectador para o calor e as geografias do semiárido nordestino e do mangue. Na direção musical, Marco França modernizou os arranjos originais de Chico Buarque e adicionou discretamente à trilha os cantos melancólicos do vaqueiro dirigidos à boiada. Falecido neste ano, o artista plástico Elifas Andreato criou um cenário marcado por uma enorme circunferência alaranjada, símbolo simultâneo do sol e da lua. 

Bem-sucedido e de vigorosa plasticidade, o espetáculo descreve o cotidiano paupérrimo no sertão e nos mangues de Recife. Vítimas da fome continuam a sina de abandonar seus lares em busca de uma existência mais digna. Não é por acaso que o elemento morte é tratado com desconfortável normalidade por todos. No desfecho, exausto da viagem, Severino vê seus sonhos desmoronarem. No fundo, ele viera de longe seguindo o próprio enterro.   

(Edgar Olimpio de Souza- O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(foto João Caldas)

 

Avaliação: ótimo

 

Morte e Vida Severina

 

Texto: João Cabral de Melo Neto

Músicas: Chico Buarque

Direção: Elias Andreato

Elenco: Dudu Galvão, Andréa Bassit, Badu Morais, Patricia Gasppar, Jonathan Faria e outros.

Estreou: 15/04/2022

Tuca (Rua Monte Alegre, 1.024, Perdizes). Sexta e sábado, 21h; domingo, 19h. Ingresso: R$ 40 a R$ 100. Em cartaz até 26 de junho.

Comente este artigo!