Teatro: Dançamos Juntos no Carnaval das Gentes

Nos minutos iniciais a trupe avisa que eles são impulsivos e que é muito difícil saber onde termina a besteira e começa a seriedade. São passadistas? Futuristas? Na verdade, nada disso importa muito para a jovem e inquieta companhia Zero8 (Cavalos, 2017). De forma crítica e porção de humor, o grupo aborda neste trabalho um dos marcos culturais mais relevantes do século passado, a Semana de Arte Moderna de 1922, e dá destaque a uma de suas artistas mais icônicas, a pintora Anita Malfatti, apontada pioneira do movimento modernista. Assinada por Elenice Zerneri e Lucas D’Alessandro, a dramaturgia não tem a aspiração de somar outras interpretações esclarecedoras que historiadores e ensaístas já não o tenham produzido sobre os turbulentos episódios que marcaram aquela data.

Com viés carnavalizado, a peça encenada em frente ao Theatro Municipal se divide em três atos e surpreende pela inventividade e estilo. Como se fosse um baú de mistérios, de um carro abre-alas rebentam em momentos diferentes materiais necessários a uma cena. Pela calçada transitam figuras emblemáticas do passado, como os escritores modernistas Oswald de Andrade e Mário de Andrade, o mecenas e incentivador da cultura Paulo Prado, além dos pintores Di Cavalcanti e Anita Malfatti, representada com um lenço no braço direito.    

Simples, limpa e reverente ao recorte do texto, a direção de Paula Klein é descomplicada, bem cuidada e atenta à temperatura crítica e bem humorada do conteúdo pesquisado. Há nítida preocupação em não deixar arrastar o ritmo e cair na monotonia. O diálogo com o público, que se acomoda na escadaria, se processa espontaneamente e com afabilidade, transpondo o desafio de enfrentar os imprevistos da rua. Soluções criativas germinam a todo instante. Uma escada serve de trilho ferroviário, cavalete e portal para uma viagem no tempo. No caso, o regresso cem anos atrás para a efervescente Semana de Arte Moderna, o manifesto artístico que intencionava renovar o ambiente artístico-cultural do momento. A montagem é embalada com música executada ao vivo. Surdo, tamborim, caxixi, teclado, flauta transversal, violão e reco-reco são empregados na trilha sonora original, construída de acordo com as necessidades do desenvolvimento da narrativa. 

O elenco preserva o conceito do faz de conta e desembrulha bons desempenhos individuais, na medida do talento e do preparo de cada ator. Eles imergiram na proposta de reler os acontecimentos daquele período e valorizar seus desdobramentos e implicações. Bárbara Sgarbi, Elenice Zerneri, Larissa Janotti, Laura La Padula e Lucas D’Alessandro se revezam no papeis. No geral o rendimento é convincente e o coletivo transpira fibra e entusiasmo.

Toda a mis-en-scène é atravessada por fina camada de ironia. Ao citarem o poeta e cronista Menotti Del Picchia, se anuncia que ele está meio estranho, andando por aí de verde e amarelo. A pintora Tarsila do Amaral é lembrada também pelas traições conjugais das quais foi vítima. Uma discussão entre Oswald de Andrade e Mário de Andrade em torno da posse de uma obra ganha ares infantis. Tipos caricatos do presente são referenciados. “Queremos uma cultura dinâmica, baseada na pátria, na família e na ligação com Deus”, brada o ex-secretário da Cultura, Roberto Alvim. “Arte para mim é o pum do palhaço”, sintetiza a atriz Regina Duarte. O influenciador digital Olavo de Carvalho se indigna: “isso daí é um hímen complacente, onde entra piroca de rinoceronte!”.

São brincadeiras que não comprometem o foco da trama, que abre espaço também para reflexões sérias sobre 1922. Anita Malfatti dizia não querer o belo, os temas agradáveis e bonitos. Mário de Andrade desejava evitar os versos metrificados do soneto. Di Cavalcanti pregava uma arte que não fosse importada.

A produção arrisca estabelecer um paralelo entre as duas épocas. O risco foi bem calculado. Um personagem discorre que não fomos comidos nem devorados, no máximo mastigados, engolidos e vomitados. Alguém lembra que hoje não é fácil aceitar que aquela festa modernista foi organizada por uma maioria branca e rica e destinada ao consumo dessa elite. E que, embora revolucionária, a semana lançou as bases para um manifesto fascista. Por outro lado, as ideias que surgiram ali levaram seu legado adiante e a herança pode ser observada em movimentos posteriores como o Tropicalismo, a Bossa Nova, o Cinema Novo e o Teatro Oficina.

Na visão da companhia Zero8, hoje a cidade é um território convulso como a pintura de Anita. Este projeto de Brasil, que parecia tão sólido desde então, corre na contramão e caminha mais para a morte do que para a independência. Pode-se preferir este ou outro ângulo de análise. O desfecho da montagem suscita questionamentos e é um convite à meditação. No mínimo vale como advertência. 

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

(Foto Divulgação)

 

Avaliação: Bom

 

Dançamos Juntos no Carnaval das Gentes

Direção: Paula Klein

Dramaturgia: Elenice Zerneri e Lucas D’Alessandro

Direção Musical e Trilha Sonora: Lucas D’Alessandro

Elenco: Bárbara Sgarbi, Elenice Zerneri, Larissa Janotti, Laura La Padula e Lucas D’Alessandro.

Estreou: 01/05/2022

Calçada do Theatro Municipal (Praça Ramos de Azevedo, s/n, Centro). Sábado, às 11h e 15h; domingo, 15h. Grátis. Até 28 de maio.  

Comente este artigo!