Teatro: A Pane

O que é a culpa e como mensurá-la? Nesta instigante obra do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt, que recebeu inspirada adaptação teatral assinada por Malú Bazán, a questão se infiltra na cruel trajetória do personagem central, que carrega uma transgressão gravada na alma mesmo que não saiba efetivamente qual seja. O fato, porém, é que ele precisa assumir a responsabilidade por suas ações, afinal, pode ter existido um desejo consciente por trás de tudo.

Publicado em 1955, o instigante conto ganhou versão para rádio, foi transposto para o teatro e migrou para a televisão e cinema. A trama brota quando o jaguar dirigido pelo representante comercial Alfredo Traps sofre pane mecânica num vilarejo suíço. Como os hotéis da região estão lotados, ele se hospeda na isolada mansão de um ex-juiz. Além do anfitrião, três amigos dele estão ali presentes - um promotor, um advogado de defesa e um que tardiamente descobrimos ter sido um carrasco. Todos construíram carreiras vitoriosas em suas respectivas atividades e dominam os labirintos sinuosos do direito. Hoje estão aposentados e cultivam o singular hábito de se reunirem todas as noites para reencenar processos judiciais dos quais participaram. Se não há um convidado especial para o entretenimento, eles teatralizam julgamentos históricos, como os de Sócrates, Jesus e Joana d'Arc. 

Para não parecer ingrato com quem o abrigou e por achar a proposta divertida, o visitante aceita encarnar o papel de réu. Em meio a muita comida e garrafas de vinhos finos, ele é encorajado a discorrer sobre sua vida pregressa. Traps foi um garoto pobre que ascendeu socialmente, mas logo admite que nem sempre agiu corretamente. A partir de seu relato, acaba sendo facilmente manipulado pelo promotor e até por seu advogado de defesa, que reinterpretam e distorcem a sua história de forma ardilosa. O viajante passa a desenvolver uma culpa presumível – alguns atos e condutas cometidos por ele são usados e tornados verossímeis para associá-lo à morte de seu chefe.  

O inusitado nessa dramaturgia salpicada de mordacidade consiste em observar que o hóspede se envaidece ao ser visto como executor de um crime psicologicamente criativo, realizado sem armas ou violência física, que se não fosse o processo judicial em andamento jamais viria à tona. Mesmo reputando-se inocente, cai na tentação de assumir sua culpa e se lambuzar da atenção e respeito daí decorrentes.  

A direção concebeu uma montagem simples e despojada, centrada na potência da retórica, no sutil desenvolvimento narrativo e no desempenho apurado do elenco. A encenação sublinha as notas de suspense e a comicidade nas entrelinhas, expandindo o sentido do jogo de xadrez verbal - a cenografia de Malú Bazán e Anne Cerutti (também responsável pelo figurino, composto por ternos e casacas) sugere um tabuleiro e a existência de uma escada infinita remete à intrigante criação Relatividade, do artista gráfico holandês Escher. 

Nesta arena banhada pela luz correta de Wagner Pinto e música original de Dan Maia, a experiente trupe reunida empresta sua técnica e sensibilidade aos personagens. Com ar fanfarrão, Oswaldo Mendes representa o juiz que pilota o passatempo grotesco e equaliza a batalha entre o promotor e o defensor, um duelo que rende bons momentos no palco. Antonio Petrin aciona a sua conhecida força expressiva na pele do promotor propenso a quebrar regras segundo suas conveniências. O advogado de defesa ganha tempero dissimulado na composição de Roberto Ascar. Heitor Goldflus modula a figura ameaçadora do ex-verdugo que se encarregava das execuções da pena de morte. Cesar Baccan inocula veracidade ao inocente Traps, uma criatura de dimensões dolorosamente trágicas. O mordomo é vivido com bom humor por Marcelo Ullmann - são prazerosas as passagens em que ele chega a soprar o script para os colegas. 

A perversão do conceito de justiça, o significado da lei e para que e quem ela serve é um tema recorrente no repertório de Durrenmatt. Em um de seus textos mais famosos, A Visita da Velha Senhora (1956), uma mulher rica e vingativa regressa para sua antiga cidade natal e oferece aos residentes uma quantia vultuosa em troca da morte do homem que a ludibriou no passado.

Aqui, o dramaturgo trafega numa linha mais irônica ao abordar o avesso da capa de respeitabilidade do sistema judiciário. “Não estamos mais presos a formas, protocolos, leis e todo o entulho inútil dos tribunais”, como confessa sem pruridos o juiz. É possível afrontar a lógica e se atribuir um crime a alguém sem maiores complicações. Para tanto, basta transformar uma narração bem-sucedida em um dispositivo de poder. Em O Processo, o célebre romance de Franz Kafka, Joseph K. acreditava que qualquer mal-entendido a seu respeito seria elucidado, porém seus esclarecimentos se tornam inúteis porque ninguém sabia a razão de sua detenção. O título da peça guarda uma dubiedade. A pane pode tanto se referir ao mal funcionamento do automóvel quanto à devastação mental que Traps sofreu durante a espúria sessão, controlada por cavalheiros que montaram uma armadilha sob a aparência de uma reles brincadeira. Durrenmatt tece um retrato assustador de uma sociedade em colapso moral.   

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto Rogério Alves)

 

Avaliação: Ótimo

 

A Pane

Texto: Friedrich Dürrenmatt

Direção: Malú Bazán

Elenco: Antonio Petrin, Cesar Baccan, Heitor Goldflus, Marcelo Ullmann, Oswaldo Mendes e Roberto Ascar.

Estreou: 14/01/2022

Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis). Sexta, 21h; sábado, 20h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 60 a R$ 80. Em cartaz até 12 de junho.

 

 

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