Teatro: Consentimento

Uma jovem da classe trabalhadora alega que foi estuprada na noite do funeral de sua irmã. O acusado, ausente fisicamente em cena, sustenta que a relação foi consensual. No instante em que Gayle conversa pela primeira vez com o promotor, representante do Estado, ele a interrompe, faz silêncio e, por fim, vai embora. Já no plenário, dois homens do establishment decidem friamente o destino da vítima. A linguagem técnica jurídica intoxica o interrogatório, a moça é manipulada e os sentimentos são intencionalmente dissociados do evento terrível. Não bastasse, o histórico de depressão da mulher e a circunstancial embriaguez na noite da violação, encarada como falha de caráter dela, acabam se tornando mais relevantes do que uma condenação pregressa do estuprador. Mais adiante, aliás, em uma sequência habilmente construída, as estratégias empregadas por advogados modernos em uma inquirição na corte são dissecadas à frente da plateia. 

Mas o que inicialmente parece ser uma espécie de drama de tribunal move-se, em vez disso, para uma investigação impiedosa sobre as tensões que perturbam dois casamentos em processo de implosão. Enfim, o que aconteceu com Gayle não é o único contexto de transgressão sexual nesta peça desconcertante da dramaturga inglesa Nina Raine (Tribos), que recebeu montagem magnética assinada por Camila Turim e Hugo Possolo. Outro episódio de violação sexual, que transcorre num círculo burguês, atormenta também um grupo de advogados articulados de classe média alta, moralmente repugnantes.

O termômetro de que máscaras sociais escondem verdades monstruosas pode ser visto logo nos primeiros minutos. Aparentemente felizes com o seu novo bebê, Kitty e Ed acolhem em sua residência os amigos Jake e Raquel, cujo matrimônio não anda bem das pernas. O quarteto brinca e discute sobre sexo, abuso e consentimento, muitas vezes se referindo insensivelmente aos seus próprios casos judiciais. Eles fazem planos para apresentar Zara, atriz que aspira ao papel de uma advogada em uma série televisiva, a Tim, um promotor público pouco convincente que atua no processo de estupro em que o sistemático Ed trabalha pela defesa. Ambos, aliás, se desprezam. A tentativa de aproximar os dois solteiros vai gerar consequências desastrosas.    

A trama caminha revolvendo velhas feridas dessas criaturas adúlteras, mergulhadas em uma sucessão de embates conjugais, vinganças doloridas e pedidos de perdão. Tudo acontece pelas costas de alguém, um julga o outro, alianças improváveis são formadas, invertem-se papeis. Kitty, que nunca perdoou Ed por uma infidelidade do passado, se envolve com outro homem. Após uma discussão tensa, ela acusa o marido de ter sido violada ao deixá-lo. Ele rebate com o argumento de que estavam apenas tendo um adeus inflamado.

Camila e Possolo dirigem de forma descomplicada, dispensando efeitos cênicos supérfluos. Concentram-se sobre os diálogos afiados e o resultado é uma produção vibrante, fermentada por doses de humor e emocionalmente contundente, projetada para provocar e não oferecer respostas simples. Na encenação, os personagens estão posicionados como se estivessem competindo em um ringue, em embates frontais. Marcações são desenhadas para demarcar esferas e situações de poder - estar em determinado ponto do palco pode significar um alinhamento com uma pessoa ou simbolizar uma crença contra outra.

Com estilo de atuação realista, o elenco mostra sintonia e dá veracidade a estes seres dilacerados. Flávio Tolezani entrega performance intensa na composição do autoconfiante Ed, para quem a presunção de inocência se baseia na convicção de que é melhor um homem culpado ser libertado do que um inocente ser condenado. Conforme o seu casamento se dissolve, o advogado perde a racionalidade ao usar a lógica do tribunal durante a discussão com a esposa. Em desempenho seguro, Camila Turim interpreta Kitty com modos irritantemente inquietos, que começa vulnerável até que outras nuances venham à tona. Sidney Santiago aloca um estranho timing cômico na interpretação do egoísta Jake, um sujeito mais preocupado com invasões de privacidade do que com sua própria culpa.

Helô Cintra aciona paixão e delicadeza na criação de Raquel. Com presença convincente, Gui Calzavara ilumina o reprimido e um tanto maçante Tim. Ana Cecília Junqueira encontra o tom exato para Zara, aquela que queria amor e um filho, mas não ainda Tim. Gayle, que sofreu afronta sexual de um homem que ela conhecia bem, ganha humanidade na representação de Lisi Andrade. A personagem agora está em uma luta infrutífera por justiça, dentro de um sistema que se nutre de procedimentos implacavelmente impessoais, de tênue vínculo com a verdade. Em uma das passagens capitais, ela invade uma reunião de Natal esfregando na cara dos convidados a realidade de sua dor.

Todos se movimentam pela cenografia minimalista de Brunno Anselmo, que consiste em uma plataforma com nichos. Ao longo do espetáculo tais buracos são preenchidos por móveis, que demarcam tanto salas de estar quanto uma cafeteria e um fórum. Além de aproximar o público, a arquitetura cenográfica opera a ideia de um jogo de lego e permite que, dependendo da disposição em que o espectador se encontra, ações e o comportamento dos personagens adquiram matizes e ângulos diferentes. A iluminação de Miló Martins, os figurinos de Anne Cerutti e a trilha sonora de Daniel Maia enriquecem o trabalho.  

No texto, o tema do estupro é tratado com cuidado e visto sob variadas perspectivas. No segundo ato, por exemplo, a caracterização do ultraje é menos evidente comparado à violência sofrida por Gayle no primeiro. Os advogados transformam suas casas em recintos de tribunal e levam seus rancores para seus quartos. Não há distinções entre certo e errado, nem lados óbvios a tomar. Intelectuais privilegiados aprendem que o crime sexual é produto da bestialidade e uma degradação contra um ser humano. E, pior, que eles também fazem parte do sistema de violência.

(Edgar Olimpio de Souza – O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )   

(Foto Priscila Prade)

 

Avaliação: Ótimo

 

Consentimento

Texto: Nina Raine

Direção: Camila Turim e Hugo Possolo

Elenco: Anna Cecília Junqueira, Camila Turim, Flávio Tolezani, Gui Calzavara, Helô Cintra, Lisi Andrade e Sidney Santiago.

Estreou: 14/10/2022

Sesc Belenzinho (Rua Padre Adelino, 1000, Belenzinho). Quinta a sábado, 20h; domingo, 17h. Ingresso: R$ 30. Em cartaz até 6 de novembro.

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