Teatro: Outono Inverno ou O Que Sonhamos Ontem

Vista de perto, parece uma família normal, mas o que acontece no jantar desmente o revestimento de civilidade e revela esqueletos emocionais escondidos no armário. É uma ironia crua que o encontro que reúne pai, mãe e duas filhas adultas começa em águas tranquilas e rapidamente se transforma em uma guerra psicológica, com rivalidade entre irmãos, feridas abertas, ressentimentos e problemas de autoidentidade. A peça do dramaturgo e poeta sueco Lars Norén (1944-2021), que foi habilmente adaptada por Kiko Marques e recebeu montagem enérgica assinada por Denise Weinberg, mostra como membros de um núcleo familiar se unem em direção ao abismo.   

De alguma forma, todos ali caminham em círculos e dependem de medicamentos e bebidas para suportarem suas angústias e obsessões. Médico em declínio profissional, Henrique vive com a fria e controladora bibliotecária Margarida. O matrimônio deles não passa de uma farsa. A caçula Anna ganha alguns trocados como garçonete em um bar gay, almeja se tornar dramaturga e se vitimiza diante do luxo dos outros três. Sua irmã Eva, de carreira bem-sucedida, tem um casamento em frangalhos e sofre de infertilidade, o que a faz rejeitar ferozmente o seu corpo.   

A descida ao reino das sombras acontece ao ritmo de escavações desagradáveis do passado e a necessidade de se culpar alguém. Anna saiu de casa ainda adolescente, virou mãe solteira e tenta aumentar sua parca renda implorando dinheiro na rua. Há sugestão de que ela e o pai podem ter mantido décadas atrás uma relação algo além do trivial carinho paterno. Henrique admite que idealizava sua própria genitora na menina. Margarida também destila seus desgostos. Fez o marido escolher entre a mãe dele e ela mesma. Agora quer que ele a escolha novamente em vez da filha mais nova. Eva questiona se os pais precisavam mesmo ter duas herdeiras.

A potência da dramaturgia se constrói com o tempo que vai e volta ao sabor das memórias e diálogos sobrepostos que mais parecem faíscas voando. A direção mantém sintonia com o autor e encontra um tom crível para o contexto realista desse conjunto disfuncional. Denise lapidou marcações que ressaltam o clima claustrofóbico em que patinam estas criaturas melancólicas, dispostas a literalmente virar a mesa – pai e mãe quase nunca se levantam de suas cadeiras, enquanto as filhas se movimentam freneticamente pelo espaço. A atmosfera é pesada e cortante, tonificada pelo uso eventual de microfones e a hipnótica e fantasmagórica moldura sonora criada e executada ao vivo por Gregory Slivar. A cenografia e os figurinos de Chris Aizner, além do desenho de luz de Wagner Pinto, eletrificam a montagem.

O elenco transpira intensidade na representação. Cada um tem seu espaço para expor as falhas profundas de seus personagens e arrancar pedaços um do outro. Dinah Feldman é um dínamo em cena ao habitar a explosiva Anna, traumatizada por uma infância que acredita detestável. Em performance sólida, Nicole Cordery concede espessura à filha mais racional, porém igualmente infeliz, que se resignou aos confortos da vida burguesa. Se no início Eva reage com desdém ao comportamento de sua mana mais jovem, ela entra em erupção conforme a noite avança. Noemi Marinho enriquece o papel da mulher dominadora e sob pressão, que admite não ser o modelo ideal de pessoa e confessa já ter pulado a cerca. Na pele do frustrado Henrique, que se esforça para se ausentar dos conflitos, Riba Carlovich calibra a passividade de um homem com personalidade vazia e mente culpada.

Com tempero analítico e grãos de absurdo, o espetáculo oferece uma visão sombria, cruel e pessimista da nossa civilização, valendo-se do microcosmo de um dos pilares da sociedade, a família, que pode marcar o ser humano para o resto de sua vida. “Será que todas as famílias são assim?”, Henrique pergunta em certa passagem. “Me apaixonei pelo pai de vocês, comendo uma sobremesa que me dava ânsia de vômito”, faz questão de frisar Margarida. “Foi uma noite estranha", evoca-se no desfecho. Se ontem eles sonharam com um futuro feliz, hoje desfilam suas misérias.   

(Edgar Olimpio de Souza (O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )  

(Foto Leekyung Kim)

 

Avaliação: Ótimo

 

Outono Inverno ou O Que Sonhamos Ontem

Texto: Lars Norén

Direção: Denise Weinberg

Elenco: Dinah Feldman, Nicole Cordery, Noemi Marinho e Riba Carlovich.

Estreou: 27/10/2022

Oficina Cultural Oswald de Andrad (Rua Três Rios, 363, Bom Retiro). Terça, quinta e sexta, 20h; quarta, 15h, sábados, 15h e 18h (Dias 24/11 e 2/12 não haverá sessão devido ao calendário de jogos da copa do mundo). Entrada gratuita. Em cartaz até 03 de dezembro de 2022.

 

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