Teatro: Coisas Estranhas que o Mar Traz

Em um vilarejo litorâneo, seres silenciosamente solitários cruzam seus sonhos, esperanças, dramas, medos, dores e trajetórias. Eles se identificam nas assimetrias e anseiam construir um núcleo fraternal. Livremente inspirada no livro O Filho de Mil Homens, do escritor português Valter Hugo Mãe, a inspirada montagem do Grupo Folias destila uma poética reflexão sobre as possibilidades de felicidade em meio ao vazio e vacuidade dos tempos contemporâneos. 

A viga de sustentação da trama é a solidão de um homem em busca de um filho e de um menino órfão à procura de um pai. Ou de como pessoas que parecem suspensas no tempo, como uma mulher renegada no lugarejo, acabam entrelaçadas em uma espécie de família, se fortalecendo e aportando novos sentidos às suas existências. Talvez não seja tão raro assim encontrar alguém com ferimentos iguais. Há poucas reviravoltas no enredo. À primeira vista, os eventos se revelam desconectados, mas aos poucos vai se instaurando uma teia de conexões entre estes personagens, engolfados no abismo de suas próprias realidades.

A dramaturgia assinada por Marcia Fernandes e Cleber Laguna, também responsáveis pela direção, expressa como o sofrimento e a angústia podem ser vistos de maneira mais assertiva. Momentos de isolamento do convívio social, sabemos, têm o potencial de contribuir para o processo de crescimento e amadurecimento dos seres humanos. O espetáculo se vale de bonecos, objetos em miniatura, máscaras, teatro de sombras e animação para construir uma fábula envolvente. Brotam quadros de impacto visual.  Em determinada sequência, casinhas iluminadas sobrevoam o espaço e um barco singra pelo palco. Apenas poucas frases são proferidas ao longo da mis-en-scène, os silêncios são eloquentes e o que ecoa é extraordinariamente simples.   

O elenco se qualifica pela sobriedade e comedimento, se movimenta escorado em gestos suaves e manipula bonecos, máscaras e objetos cênicos com delicadeza. Cada cena tem uma função específica a cumprir e funciona bem. Alex Rocha, Clarissa Moser, Lui Seixas, Marcella Vicentini e Marcellus Bechelle transmitem calor, emoção e comprometimento.

A encenação cadenciada e sem pressa captura a atenção do público pela atmosfera onírica e a direção trata de dar coerência ao fio narrativo. A combinação de linguagens e estéticas é mais do que um recurso técnico à serviço de uma ideia artística. Os figurinos e a cenografia de Maria Zuquim são harmônicos. A iluminação de Diego França cria belas molduras. Expressivos, os bonecos de Juliana Notari e as máscaras que ela e Cléber Laguna esculpiram, além das figuras para sombras de Matias Ivan Arce, recheiam o trabalho com inventividade e sentimentos. A textura sonora de Jô Coutinho vibra melancolia.

Por um viés sensível, a peça transpira o sentimento de que se existem dificuldades na vida, é plenamente viável achar caminhos para superá-las. É tocante a ânsia desses personagens de pertencerem a algum lugar, de serem aceitos e amados, debatendo-se em uma sociedade avessa ao diferente e blindada a rupturas de leis morais. São corações solitários não dispostos a permitir que a sua posição desfavorável num mundo brutalizado lhes roube o direito inato ao bem estar. Nas entrelinhas emerge a convicção de que indivíduos isolados dos outros e de si mesmos podem se juntar e constituir uma família, mesmo que não seja uma família nos moldes tradicionais. Neste drama edificante e impregnado de humanismo, a esperança nunca se extingue.   

(Edgar Olimpio de Souza - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. )

(Foto: Mariana Chama)

 

Avaliação: Bom

 

Coisas Estranhas que o Mar Traz

Dramaturgia e Direção: Marcia Fernandes e Cléber Laguna

Elenco: Alex Rocha, Clarissa Moser, Lui Seixas, Marcella Vicentini e Marcellus Bechelle

Estreou: 22/03/2024

Galpão do Folias (Rua Ana Cintra, 213, Santa Cecília). Sexta e sábado, 20h; domingo e segunda, 19h. Ingresso: R$ 40 e R$ 10 (moradores da região). Em cartaz até 13 de maio.

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