A doce vida

O diretor de teatro Celso Nunes decidiu chutar o pau da barraca e hoje está morando em Salvador, após quinze anos exilado em Florianópolis. Cansado das horas roubadas no trânsito paulistano, do agito e do estresse da metrópole, ele foi em busca de uma reciclagem existencial. Um dos nomes mais importantes das artes cênicas do País, afirma não sentir nem um pingo de arrependimento da atitude que tomou. “As mudanças são necessárias para dar uma chacoalhada na gente”, justifica. Nunes só tem aparecido no eixo Rio-São Paulo para tocar projetos teatrais para os quais é convidado ou visitar amigos e familiares. Nos próximos meses deverá pilotar três trabalhos na Cidade Maravilhosa. “Ainda sou chamado porque tenho 46 anos de teatro nas costas.” 

 

No início deste ano, por exemplo, circulou alguns dias pela capital paulista para acompanhar como diretor o início da temporada da comédia Estranho Casal, de Neil Simon, recém-chegada de vitoriosa carreira nos palcos cariocas. O primeiro sinal de que alguma coisa havia mudado na sua visão de mundo aconteceu logo nas primeiras horas. Em caminhada pelo centro, ele se flagrou surpreendido ao observar o figurino extravagante de algumas pessoas, em contraste com a concretude da cidade. Notou que, por mais excêntrico e incomum que possa ser o visual de alguém, hoje em dianinguém parece se incomodar. Lembrou-se então da época em que trabalhava como office-boy, nos anos 1950, e testemunhou um episódio marcante na Rua Barão de Itapetininga.

 

Tudo começou quando percebeu um burburinho se formando em torno de um sujeito que desfilava de saiote pelas ruas do centro. Soube depois tratar-se do artista Flavio de Carvalho, personagem iconoclasta do modernismo brasileiro que tinha como um de seus esportes a irreverência. Naquele desfile incomum, ele queria afrontar as convenções sociais. “Virou um escândalo, chamavam-no de palhaço, doido, mulherzinha. Hoje em dia passaria batido, não soaria provocação, ninguém nem ligaria, talvez.No fundo no fundo, estou defasado para as extravagâncias da megalópole”, ri.

 

Pode parecer estranho que um diretor de reconhecido prestígio na cena teatral se espante com uma moça exibindo indiscreto tomara-que-caia numa tarde chuvosa, em meio a executivos engravatados e outras pessoas em trajes convencionais. Afinal, Nunes tem mestrado e doutorado em teatro, sólida formação cultural, curso de direção na Sorbonne, foi professor na Unicamp, ex-estagiário do reverenciado diretor polonês Jerzy Grotowski e acumula espetáculos marcantes no currículo. Por sinal, ele passeia com desenvoltura por diversos gêneros e dirigiu artistas famosos: Equus (com Paulo Autran), Escuta, Zé! (Marilena Ansaldi),As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (Fernanda Montenegro e Renata Sorrah), Honra (Regina Duarte e Marcos Caruso), K2 (Gabriel Braga Nunes) e Molly Sweeney (Júlia Lemmertz e Ednei Giovennazzi).

 

Na verdade, a estranheza logo cai por terra se observado um fato – o de que Florianópolis, antes, e Salvador, agora, forneceram-lhe outros parâmetros culturais. “Eu mudei completamente meu jeito de viver. Perdi algumas referências e ganhei outras, descobri que a vida oferece mil significados diferentes e que compete a cada um saber desfrutá-los”, explica. “Quando eu poderia imaginar que andaria descalço o dia inteiro e mergulharia no mar às três da madrugada?”, indaga-se, ressalvando que não virou ermitão por ter abandonado radicalmente o corre-corre de uma metrópole. O que buscou foi uma espécie de upgrade interior.  

 

Foi em meados dos anos 1990 que ele sentiu o estalo de que a desenfreada loucura de uma cidade grande estava confiscando-lhe parte da sua preciosa vida. O cálculo que fazia era uma simples matemática: três horas diárias paradas no trânsito equivaliam a um dia perdido por semana. Num mês, significavam quatro dias a menos. Num ano, um mês e meio subtraído. Desistiu. “Queria viver 365 dias por ano e não 320, parecia que eu definhava aos poucos dentro daquele mundo de latas”, recorda. 

 

Somaram-se à decisão de jogar tudo para o ar outros fatores. Um deles, a rotina de emendar espetáculos, média de quatro a cinco anuais, quase sem tempo para respirar. Para completar, vivia um período longo de lutos familiares. “Em algum momento eu acabaria transportando esses conflitos pessoais para o meu trabalho, com inversão dos pólos, correndo o risco de transformar comédia em drama ou vice-versa”, revela.

 

Silêncio e isolamento. A virada finalmente aconteceu quando a atriz Christiane Torloni o apresentou para um profissional de bioenergia que a havia curado de uma rouquidão durante a temporada bem sucedida de um espetáculo. Foi através dele que Nunes entrou em contato com o Rolfing, processo terapêutico de reintegração estrutural e de educação pelos movimentos. Estudando a relação da anatomia física com o comportamento, percebeu que carregava o padrão anatômico de alguém que exercia algum tipo de autoridade. “De fato, eu era chefe de departamento na Unicamp, chefe de família, diretor, professor, ou seja, estava sempre na posição de liderança de alguma coisa. Daí passei por um processo de descondicionamento.”

 

Estimulado pelos princípios do Rolfing, e definitivamente enfastiado da rotina da metrópole, transferiu-se de mala e cuia para a capital de Santa Catarina. Apesar de alguns amigos seus indicarem conhecidos que moravam na ilha, dispostos a ajudá-lo na adaptação, preferiu não recorrer a ninguém. Optou pelo silêncio e isolamento. O início foi difícil, mas arranjou-se. Comprou um barco, aprendeu os segredos da navegação e passou a se relacionar com freqüentadores do mundo náutico.

 

“É um desafio porque você chega sem conhecer ninguém e ninguém sabe nada de sua pessoa, ambos os lados estão desarmados”, explica. Em Florianópolis, sobreviveu da aposentadoria como professor, de oficinas e workshops teatrais, do consultório de Rolfing que abriu e dos convites para dirigir em São Paulo e Rio de Janeiro, além de eventualmente assinar produções locais - uma montagem do texto As Criadas, de Jean Genet, estreou há pouco na cidade. Apesar de totalmente adaptado ao ritmo caiçara, decidiu zerar outra vez, “descondicionar-se”, como prefere dizer, nesta nova etapa de vida em Salvador. 

 

“Agora eu quero investigar a relação do corpo com o comportamento e a emoção no candomblé. Como ´baixam´ as entidades espirituais? Como se recebe um orixá? São questões que me interessam hoje”, justifica ele, que comprou uma unidade num apart-hotel naquela cidade. “Como disse, não tenho medo das mudanças. Você olha tudo o que juntou e percebe que pouca coisa é essencial. O maior barato é deixar a possibilidade do desconhecido roçar em você. Entre o conforto de uma vida tranqüila e o desconforto do trabalho em si mesmo, prefiro o último”, confessa.

 

Com 68 anos de idade e quase meio século de carreira no teatro, Nunes acha que está no lucro. Atravessa a maturidade com a saúde em dia, comemorando o fato de não ter tido AVC, infarto, perda de dentes e ainda sentir ótima disposição sexual. “Imagina esse coração aqui, que pulsa oitenta vezes por minuto, quantas vezes já bateu? Sou um privilegiado”, acredita ele, que busca articular uma rotina com o mínimo de estresse possível. Diferentemente da maioria, não se deixa seduzir pelas ferramentas de comunicação – faz questão de não ter celular ou pendurar página no Orkut. Não é contra as facilidades tecnológicas e redes sociais, mas vê futilidade na forma como são usadas. 

 

“Antigamente a gente procurava um local protegido ao falar por telefone, hoje o celular expõe a sua vida a todos os que estão por perto. Outro dia, no ônibus, uma mulher falava pelo aparelho e todo mundo acompanhou a sua discussão com o marido”, conta. A chegada da internet, avalia, gerou uma espécie de preguiça mental. “Como toda a informação do mundo está ali disponível a qualquer momento, isso dá bastante tranqüilidade, o que não quer dizer que a pessoa vai consultar, pesquisar e estudar mais. É como a máquina de calcular, que pensa no seu lugar. Hoje muitos têm de pensar duas vezes para dizer de cabeça quanto é nove vezes sete”, compara.

 

Pompa e barbárie. Para quem viveu intensamente os anos 1960 e chegou a engrossar o movimento dos estudantes rebeldes em Paris, em 1968, ele enxerga que os tempos atuais distorceram vários conceitos daquela época. Se antes, por exemplo, cultuava-se a beleza, o negócio agora é celebrar o corpo esculpido em academias. E as mulheres, que conquistaram várias liberdades e entraram de vez no mercado de trabalho, atualmente vêem os homens como uma caixa preta desvendada. “A Xuxa, quando engravidou, instalou o modelo da produção independente e todos se chocaram. Hoje, é algo natural. Alguns valores sociais e morais se banalizaram e, na cultura,vivemos um processo de vulgarização dos cânones antigos.”

 

Isso não significa, pondera, olhar a realidade com tintas nostálgicas. “Não traço um script, não tenho um modelo a ser aplicado, gosto da maneira de pensar da gestalt ao tratar de expectativas. A quem interessaria um mundo que correspondesse aos meus anseios?”, questiona. “Não sou egocêntrico e prefiro os que me vêem como sou do que os que tentam ver em mim o que esperam que eu seja. Se, longe das expectativas recíprocas, houver entre as pessoas possibilidades de encontros, ótimo. Se não, não há nada a fazer. Aplique este raciocínio aos casamentos e ficará fácil entender porque muitos acabam.”

 

Cita a peça Estranho Casal como exemplo. “O autor Neil Simon radiografa um jogo de projeção mútua, um personagem tentando colonizar o outro”, explica ele, que foi casado com a atriz Regina Braga, com quem teve dois filhos, o ator Gabriel Braga Nunese a fisioterapeuta Nina Braga Nunes. A partir da separação, consumada na virada dos quarenta anos, Nunes viveu outros romances, apaixonou-se, mas decidiu não mais dividir o mesmo teto com alguém. Concluiu que qualquer outra experiência estaria aquém de seu casamento, mesmo porque havia decidido a não ter mais filhos e só isso, na sua opinião, já sinaliza a superioridade da sua primeira e única união conjugal.   

 

Na breve passagem por São Paulo, Nunes incomodou-se também com o apego dos paulistanos a alguns formalismos burgueses, uma certa pompaaté no simples ato de sair para jantar. Numa noite, “escoltado” por duas conhecidas amigas, foram a um badalado restaurante nos Jardins, embora ele preferisse um lugar mais simples. Final da história: mesmo com a casa quase vazia,o atendimento demorou, parte do pedido foi esquecida ea porção tinha pouco de “generosa”. Não bastasse, a mesa era pequena e as cadeiras imensas e fundas, o que os obrigou a sentarem-se na beira do assento. Para completar, aconta veio salgada. Para ele, a impressão é a de que muitos temem afirmar suas singularidades, escudando-se em comportamentos padronizados. 

 

Hospedado na ocasião num hotel próximo da Praça da República, Nunes também percebeu sinais eloqüentes de deterioração pública no centro da cidade: prédios fuliginosos epichados, sujeira espalhada, usuários de drogas perdidos pelas ruas. Chamou a sua atenção um cartaz com foto de um índio na mata, soltando flechas e um trator desmatando atrás dele. Constatou o retrato de uma estratificação social, os muros invisíveis que são erguidos e desenham os contrastes brutais da realidade brasileira.

 

A mídia, observa, teria alguma responsabilidade nessa realidade. “Por um lado ela criou uma cultura planetária interessante, mas de outro fomentou um comportamento de indiferença em relação ao outro”. Para Nunes, se alguém não é capaz de bloquear o celular durante as duas horas de um concerto, é porque a barbárie venceu. “No fundo, as pessoas fazem questão de agir como gados. Muitos se tatuam não por uma razão original, mas porque morrem de medo de não pertencerem a uma tribo.”  

Edgar Olimpio de Souza

     

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